Letreiros. Os pedaços de uma outra Lisboa

Em 2014, os designers Rita Múrias e Paulo Barata Corrêa iniciaram uma demanda: salvar os letreiros que, outrora, marcavam os estabelecimentos comerciais de uma Lisboa em vias de extinção. Um dia, querem mostrar de forma permanente a coleção que continuam a criar. Afinal, há muitas formas de contar a história de uma cidade. Para já,…

Quando Paulo Barata Corrêa e Rita Múrias souberam que o icónico letreiro do Ritz acusava algumas marcas de envelhecimento e estava prestes a ser substituído, puseram-se logo em campo. Afinal, tratava-se de um letreiro que marcou a paisagem de Lisboa, e fazia todo o sentido juntar-se aos congéneres que o casal passou os últimos a recolher e que são um testemunho vivo da paisagem gráfica da cidade dos anos 30 ao final do século XX. Conseguiram entrar em contacto com a administração através de uma empresa da área que já conhecia o trabalho de Paulo e Rita, designers de profissão. E foram bem sucedidos: hoje, o velhinho letreiro do hotel Ritz (que data do final dos anos 50) é um dos 250 letreiros de estabelecimentos comerciais que já salvaram da destruição.

A história começa a ser contada em 2014, quando Paulo trabalhava na Baixa lisboeta, «a área mais rica desse tipo de letreiros». Uma outra Baixa, que ainda guardava o odor de outros tempos. «Começámos a ficar alerta, percebemos que havia letreiros a desaparecer das fachadas. Estavam lá e, passado uns tempos já não estavam», recorda. E qual era o destino? O lixo. «Mandavam-nos para o lixo e continuam a mandar, são as relíquias de uma cidade que está praticamente acabada. É um processo de transformação que está no fim», vaticina o designer.

Ainda começaram por fotografar os ditos, mas depois perceberam que a melhor maneira de os preservar era mesmo recolhê-los. Com algum pudor inicial, próprio de quem dá os primeiros passos, começaram a entrar nas lojas e a explicar ao que iam ou, caso os estabelecimentos já tivessem fechado, a identificar os proprietários. Mas os fechos são sempre momentos difíceis na vida de lojistas e clientes. «O processo de fecho é um processo delicado, às vezes havia duas e três gerações de lojistas, outros que estavam tão fartos que só queriam fechar. Eu percebo, isto é humano», nota Paulo.

Não desistiram e colocaram para si próprios metas. «Nos primeiros quatro ou cinco meses estabelecemos que íamos recolher um letreiro por semana, porque havia muitos abandonados», lembra Paulo. Conseguiram e, aos poucos, começaram a ser conhecidos pelo seu trabalho, tendo formado entretanto uma associação cultural sem fins lucrativos para dar azo ao projeto Letreiro Galeria.

Paulo e Rita não compram os letreiros, ao contrário dos antiquários, que, por vezes, competem com eles nestes caminhos. Mas acarretam todos os custos da retirada dos mesmos e, depois, garantem a preservação, limpeza e catalogação destes materiais, agora guardados num armazém em Oeiras. Em troca, fazem um pacto com os lojistas – e com os lisboetas. «O nosso compromisso é não vender as peças e não as usar para decorar os espaços. Podemos alugar o cinema, para restituir as ruas antigas, o que faz sentido para o projeto», nota Paulo. E, cada vez mais perto, está o derradeiro desejo de ambos: conseguir um espaço expositivo permanente onde possam mostrar a coleção que, de há seis anos para cá, ocupou um lugar tão importante nas suas vidas. «Ontem tirámos um letreiro na Rua da Conceição de uma retrosaria dos anos 60. É muito mais do que uma paixão, além da nossa vida profissional corremos por esta urgência de estar a perder pedaços da cidade», garante. 

Pelo caminho, foram aprendendo muito sobre letreiros, até porque há uma variedade muito grande, que vai desde vidros pintados, letreiros em metal, néones, portas corta-vento…«Tudo o que tem letras», resume. E, nesta demanda, Rita resolveu dar um passo em frente: está no terceiro ano de um doutoramento na Faculdade de Arquitetura de Lisboa no qual se propôs, precisamente, a estudar os letreiros. «Há várias maneiras de contar a história de uma cidade, esta ainda não foi contada», nota o nosso interlocutor.

Quando conseguirem abrir o espaço expositivo que acreditam que a cidade merece, Rita e Paulo já têm planos bem definidos na cabeça. «Uma das coisas que queremos implementar é fazer aulas vivas no armazém permanente para arquitetos ou designers», conta Paulo. 

Entretanto já fizeram algumas exposições nas quais já mostraram a coleção. Até à data, a maior mostra decorreu no MUDE, terminou em 2017 e foi um dos momentos a dar força ao projeto. 

Até domingo, uma pequena parte desta outra Lisboa pode ser vista na livraria Stolen Books, em Alvalade. A exposição chama-se Luzes na Cidade e foi organizada com o apoio da junta de freguesia local, sendo uma das iniciativas inserida no Abecedário Festival da Palavra. Esteve para abrir a 19 de março mas foi adiada devido ao surto. Acabou por ser inaugurada no dia 25 de junho e pode ser vista entre as 15 e as 19h00 – a entrada é gratuita. Estando em Alvalade, Rita e Paulo optaram por levar uma maioria de letreiros relacionados com a zona e, até agora, o feedback dos fregueses tem sido especial. «Há também uma parte muito emocional, afinal os letreiros fizeram parte da infância das pessoas. Tivemos uma senhora que ia lanchar num sítio com a avó, reviu aqui esse letreiro e saiu da exposição emocionada», conta Paulo.

Estas histórias sucedem-se. E este lado da nostalgia e da emoção é também um reverso da moeda que os designers não esperavam encontrar, mas que agora faz também parte do projeto. De momento, Rita e Bruno já têm a cidade toda mapeada ‘em letreiros’, ao ponto de estes se terem tornado pontos de referência para o casal. Por isso, se lhes pedir indicações na rua, não estranhe se lhe responderem: «É só virar à direita, quando vir o letreiro X…».