Liberalismo totalitário

Creio que ninguém dirá que o New York Times é o bastião do esquerdismo internacional, ou um jornal a soldo da oposição ao Governo português.

não posso assegurar que algum ser mais desprovido de vigor anímico não considere que o editorial publicado esta semana neste jornal americano é uma encomenda de sectores maçónicos lusitanos, porque se há área nacional em contínuo crescimento é a da teoria da conspiração.

os editorialistas do new york times afirmam que, se a alemanha e as instituições europeias não inverterem a política de penalização extrema dos países do sul da europa, acabarão por estoirar com o euro e com o próprio projecto europeu.

aconselham os líderes do norte da europa a que incentivem as economias do sul e a permitirem que «os países mais frágeis possam emitir dívida apoiada pela zona euro», de forma a promover o desenvolvimento económico que, por sua vez, facilitará a realização das reformas estruturais necessárias ao reequilíbrio financeiro desses países.

os estados unidos da américa sabem, por experiência própria, que a insistência em políticas recessivas só agrava a recessão – e que, em última análise, como diz mariel hemingway no último fotograma do esplendoroso manhattan de woody allen: «temos de ter um bocadinho de fé nas pessoas».

o problema do actual governo de portugal é que só tem fé em si mesmo: uma fé imensa, incontrolada, que resiste a todas as provas dos factos.

passos coelho e o seu cérebro vítor gaspar estão genuinamente convencidos de que é através do castigo que as pessoas melhoram. julgam que a pena das galés e a ameaça da fome ou dos suplícios tornam o português mais resistente e produtivo. esta filosofia do martírio não tem ponta por onde se lhe pegue: o espectro da fome enxota a criatividade, a sensação de injustiça prolongada promove a ronha, a falta de amor-próprio é mortal e contagiosa.

nenhum país se salva sacrificando uma geração; ora o discurso governativo pretende sacrificar três: a dos mais velhos, a dos que estão na meia-idade e a dos seus filhos.

tudo a favor de um futuro ligeiramente menos fosco para os netos e bisnetos da população agora existente. não há amor familiar de tão longo alcance, nem desvario de controlo capaz de acertar em tão distante futuro.

nada neste mundo é previsível – o atentado de boston é a demonstração cruel desta evidência. e nada é inevitável: ao contrário do que se apregoa e repete, não é verdade que a austeridade seja um caminho sem alternativa.

o liberalismo totalitário pretende lavar-nos o cérebro com o detergente do pensamento único, tão corrosivo que desfez o império comunista. a ideologia, que agora se pretende enterrar, é a marca distintiva da humanidade.

por muito que a arrogância desta nova direita mal formada e pessimamente informada pretenda ignorar os avisos sucessivos como conversa fiada de líricos preguiçosos, em breve vai ter de os assimilar.

dirão que o new york times defende os interesses americanos, que precisam do equilíbrio garantido pela pré-potência eterna e mansa que é a europa. todos dependemos uns dos outros; um dia gaspar entenderá isso, que é o essencial e não cabe na quadrícula das suas contas em défice crónico.

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