Lopes. Descontente é ser homem

Cumpriram-se esta semana 35 anos sobre um dos momentos mais gloriosos da história do desporto português. No dia 12 de Agosto de 1984, Carlos Lopes venceu a maratona do Jogos Olímpicos de Los Angeles e deu, pela primeira vez, uma medalha de ouro ao país. Pela madrugada, em Portugal, a corrida de Lopes foi vivida…

Descontente: eis uma palavra que pode definir Carlos Lopes. E Pessoa dizia: «Ser descontente é ser homem./Que as forças cegas se domem/Pela visão que a alma tem!».

No dia 12 de Agosto de 1984, Carlos Lopes tornou-se, lá do alto do seu metro e sessenta e sete de altura, um homem enorme. Faço um esforço para recordar alguém tão descontente e não consigo. A madrugada ia comendo o céu de Águeda nessas horas sem sono. Juntámo-nos num café, teimosamente aberto. Nós, teimosamente crentes. Lopes era o Lopes. O Lopes não desistia. O Lopes não era de ficar em casa, contente com o seu lar. A cadência do poema perseguiu-me: «Triste de quem vive em casa/Contente com o seu lar/Sem que um sonho, no erguer de asa/Faça até mais rubra a brasa/Da lareira a abandonar!».

Carlos Alberto de Sousa Lopes: por extenso Carlos Lopes, diria Nelson Rodrigues. Lá de São Salvador, freguesia agora anexada a Repeses, Vildemoinhos, Viseu também da minha infância, toda a cidade cheia de primos, o meu tio Adelino Azevedo Pinto, o Rijo… Lopes também era Rijo, assim mesmo, com maiúsculas. Havia em nós, que o víamos pela televisão, algures nos aredores do Botaréu, a certeza de que não existiam contrariedades que o dobrassem. Ele ia, e o país ia com ele. Arrastava tudo na frente, como uma vaga, quem diria?, ele que nasceu longe do mar. Queria ter sido jogador de futebol, no Lusitano, parece que não levava grande jeito. Todo ele pele e osso, servente de pedreiro, desatou a correr, a correr sempre, não parou mais, cada meta era o início de uma nova meta, o mundo estava cheio de metas para cortar.

Oito anos antes vimos como sofreu nos dez mil metros, cinicamente batido por um finlandês cínico que fazia transfusões de sangue, trocava o que lhe corria nas veias por outro que lhe traziam, purificado por meses de altitude. Ninguém levantou a mão e gritou: batota! Lasse Viren ergueu os braços e Lopes, atrás dele, com aquele olhar fundo de uma tristeza tão portuguesa, tão nossa, mas ao mesmo tempo um brilho de revolta, de descontentamento, é isso!, de descontentamento, ser descontente é ser homem.

O tempo passou para Carlos Lopes e para todos nós. 1976 a 1984. «Eras sobre eras se somem/No tempo que em eras vem». Lopes tinha 37 anos em Los Angeles, nasceu em Fevereiro de 1947, trouxe o descontentamento preso no peito, iria entorná-lo como quem larga lastro pelas ruas de Los Angeles, quilómetro a quilómetro dos quarenta e dois quilómetros e cento e noventa e cinco metros medidos ao centímetro por Fidípides em 490 antes do Cristo. Leiam Heródoto, está lá tudo.

 

Aos 37 quilómetros!

Não havia um Heródoto naquela tarde de Los Angeles, quatro da manhã em Portugal e em Águeda, junto ao rio e ao Cais das Laranjeiras. Não houve um Heródoto que escrevesse Carlos Lopes e os seus quarenta e dois quilómetros e cento e noventa e cinco metros e o universo perdeu a saga de um herói.

Durante trinta e sete desses pouco mais de quarenta e dois quilómetros, Carlos Lopes ia atento. A sua passada escondia o que estava para vir. De repente, e não foi preciso mais do que um instante, todos percebemos aquele descontentamento que invadia um corpo estreito, o peito em quilha como uma nau do Gama, a respiração acelarada, enfunando as velas de um caminho ainda por desbravar.

Aos 37 quilómetros, Lopes foi embora e levou atrás de si dois homens desesperados, o irlandês John Treacy e o inglês Charles Speeding. Foi aí que ele soube, que todos soubémos, que morrera D. Sebastião em Alcácer Quibir e que não vale a pena continuarmos perdidos nas brumas da sua espera. Nada tiraria a medalha de ouro a Carlos Lopes, o português que não fazia acordos com o fado nem com a desgraça. Ele era um vencedor. O poema martelava-me na cabeça ao mesmo tempo que os seus pés martelavam o chão duro de Los Angeles,  El Pueblo de Nuestra Señora la Reina de los Angeles del Río de Porciúncula, Califórnia: «Ser descontente é ser homem./Que as forças cegas se domem/Pela visão que a alma tem!».

Sim, era também uma visão da alma e do coração. O peito de Carlos Lopes cresceu em direcção aos metros finais, aos milímetros finais. E, quando subiu ao lugar alto do pódio, tinha feito esquecer a lição da raíz que nos manda ter a vida por sepultura. Viveu para sempre!