Louvor da ingenuidade

Pus-me a pensar na frase que mais vezes terei ouvido ao longo da vida. O resultado deixou-me muito feliz. Depois pensei na segunda frase que os meus ouvidos mais escutaram, e é esta: “Foste muito ingénua”.

Curiosamente, dei-me conta de que a ouço mais agora, depois do meio século, do que nos frescores da juventude.

Ninguém estranha que uma rapariga seja incauta e crédula ou se deixe levar ao engano por entusiasmo, insegurança ou timidez. Quando era nova, senti-me muitas vezes usada exclusivamente por causa da minha juventude, isto é: percebia que as pessoas me exploravam (laboral, económica ou afetivamente) porque topavam que eu não tinha força nem idade para dizer ‘não’.

Comecei a trabalhar aos 19 anos, numa redação de velhas e machas raposas do jornalismo, e não consegui absorver ao mesmo tempo as doses de informação velocíssima que me forneciam diariamente e a pressão dos sábios chefes para que trabalhasse além de todos os limites.

Não havia Google, nem se conheciam palavras como “assédio” ou “bullying”. Era tão ingénua que ficava feliz quando lia um texto meu publicado com outro nome sem que sequer uma vírgula fosse alterada. Sentia que tinha cumprido. Nessa altura, ninguém me chamava ingénua.

Ia para a universidade de manhã, trabalhava no jornal à tarde e à noite; demasiadas vezes dormia, escondida nas últimas filas, na aula das oito da madrugada.

Valeram-me três coisas: em primeiro lugar, a solidariedade sem falhas da única outra jovem do jornal, muito talentosa e extraordinariamente hábil a furar a muralha de aço do machismo instituído; quando o coro masculino pretendia intimidar-nos com anedotas porcas, a Clara Pinto Correia declarava, tonitruante, do outro lado da sala: “Inês, infelizmente aqui não há um único gajo que se pudesse sequer considerar consumir, é uma pena, não achas?”.

Estas intervenções resultavam num ambiente de silêncio profundo e tranquilizador, muito propício à concentração na escrita (à máquina, em papel).

Em segundo lugar, o apoio e os conselhos suaves e permanentes do Fernando Dacosta para que aprendesse a livrar-me da quantidade e a reclamar tempo para poder trabalhar em qualidade.

Em terceiro lugar, uma frase que a minha mãe me repetia desde a infância: “A máxima liberdade implica a máxima responsabilidade”. Assim consegui, pelo menos, dizer não a todas as tentativas de coação ideológica, de onde quer que viessem.

Fui educada para ser simpática e prestável, como tristemente a maioria das meninas ainda é, atender às necessidades dos mais velhos e dos mais novos, ajudar tudo e todos, e queria corresponder, obviamente, para ser amada.

Só já muito balzaquiana me deu para preferir o respeito ao amor – ou antes, para decidir entender o amor como uma forma de respeito recíproco. Mais na teoria que na prática, é certo: a exigência da reciprocidade, só a descobri no virar dos cinquenta, há três anos. 

Adoraria não me ter deixado enganar tantas vezes por gente biltre, alguma dela com fumos de fineza social, alguma dela aparecida na nuvem do intelecto aparente, alguma dela daquele tom rasca que brilha logo a olho nu. “Então não se estava mesmo a ver? “ – perguntam-me depois umas almas doutas, saídas da espertíssima cepa dos que nunca se enganam e raramente têm dúvidas.

Cepa de sucesso, não posso negá-lo; mas não a invejo.

Sou mais ingénua hoje do que era aos vinte anos, porque sou menos insegura, mais impaciente, menos moderada na expressão dos afetos e desafetos.

Não tenho medo de me desiludir; é esse o preço dos sonhos. Dos que usam a boa-fé alheia para os enganar, não tenho dó; limito-me a desprezá-los. Sem ingenuidade não se escrevem livros, porque é ela a porta de acesso ao quarto escuro da natureza humana.    

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