Mandela – a confiança e a grandeza

A transição na África do Sul foi uma operação complexa, discreta, às vezes secreta, cujos momentos decisivos aconteceram nos bastidores entre os chefes de cada grupo. Os ‘duros’, os responsáveis pela segurança, os generais Viljoen e Meiring pelos boers, Thabo Mbeki e Jacob Zuma pelo ANC, estiveram na linha da frente. Mas também estiveram na…

este processo durou talvez uma década. já nos anos oitenta havia documentos estratégicos sobre a economia sul-africana que, com conhecimento e autorização do governo, eram entregues a dirigentes do anc. mandela não foi o único protagonista de tudo isto, mas foi a cúpula, o mestre, o mágico que, nos momentos de dúvida, de ruptura, restaurou a confiança.

a confiança – a confiança homem a homem, sem papéis, sem tratados, sem garantias jurídicas ou bancárias, é o capítulo principal da ética entre inimigos, a chave única para a paz doméstica e hoje até entre as nações. quando a áfrica do sul branca sofria o peso das sanções da américa de reagan e o alívio da queda da união soviética, os reformistas do partido nacional acharam que era a altura de negociar a transição de um sistema que no mundo pós-guerra fria não podia subsistir. mandela viu-o com lucidez e agiu em conformidade.

o chefe histórico do anc era um homem bom, mas firme, que em momento algum se submeteria ou sacrificaria os direitos do seu povo. no entanto percebia o outro povo da áfrica do sul, a tribo branca. sabia que grande parte da repressão, da discriminação, da segregação, não vinham do sadismo selvagem, vinham do medo, do medo de expulsão, submissão ou massacre pela maioria. sabia também que, apesar do isolamento político e do ostracismo ideológico, a tribo branca, os boers, se não confiasse no futuro iria resistir e que a força estava do lado deles. eram camponeses africanos, religiosos, duros, corajosos que tinham posto em xeque o império britânico.

este foi o grande papel de madiba. enquanto thabo e zuma discutiam à porta fechada com os generais brancos as disposições concretas da transição, ele falava com a força moral de quem sofrera pelas suas convicções e que não tinha ressentimentos.

pouco antes das eleições o general constand viljoen, o ex-comandante da defense force, receoso da tomada do poder pelo anc, começou a organizar uma rede de ‘comandos’. mandela soube, convidou-o para casa, tomou chá com ele, mostrou-lhe que compreendia e respeitava os temores dos brancos e que conhecia a história da tribo. e em sucessivas conversas, discutiram e acertaram o futuro como inimigos que se respeitam e compreendem. no dia da inauguração do parlamento, em 1994, mandela, o vencedor, atravessou a sala para ir saudar viljoen, eleito pela frente da liberdade.

mandela era um político de grandes e firmes convicções, de inteligência e de coração. e tinha the quality of mercy.

tinha, sobretudo, como escreveu o nobel sul-africano j. m. coetzee, grandeza. o que parece faltar aos que vieram depois. por lá e por cá.