Márcia: A felicidade como protesto

Sempre que canta uma das suas composições, Márcia é transportada imediatamente para o local onde o tema nasceu. Com ‘A Pele que Há em Mim’, da estreia Dá, recua invariavelmente até à Avenida do Brasil, em Lisboa. Foi ali, ao sair de uma exposição no Hospital Júlio de Matos, que a melodia dessa canção se…

nestes flashbacks há espaços recorrentes e os transportes públicos são, habitualmente, locais férteis de criação para márcia. como acredita que manda «sempre pouco» nas letras – «elas chegam quando têm de chegar» –, na hora de enfrentar a cidade é comum abstrair-se pensando em temas inacabados. do novo casulo, ‘camadas’ foi terminado num autocarro no areeiro e ‘delicado’ na avenida de madrid. porém, estes movimentos exteriores não ditam a criação. uma música tão introspectiva nunca nasce ‘de fora para dentro’ e o exercício, «quase místico», é tentar que «uma parte escondida» de si lhe diga coisas que ainda não sabe.

este carácter biográfico já era assumido há dois anos, quando lançou dá, mas com casulo, nas lojas a partir de segunda-feira, há um aprofundamento do lado pessoal. entre os dois registos, márcia encontrou a estabilidade emocional ao lado do músico filipe cunha monteiro (que também assina a produção do disco) e foi mãe, há pouco mais de um ano, de uma menina. esse estado de graça originou um olhar ainda mais introspectivo. «sou muito analista. ando sempre a analisar como penso, como interpretei uma situação ou uma pessoa… estou sempre em overthinking, o que pode ser muito cansativo», comenta, reforçando que a maternidade e a vida a dois possibilitou-lhe a fuga para a idealização de uma paisagem sonora que a acalma e, consequentemente, a quem a ouve.

aceitar os nossos limites

além de analista, márcia também é muito revoltada com as injustiças sociais e políticas e as canções de casulo são gritos de revolta. mesmo que os decibéis sejam sempre contemplativos e melódicos, cheios de luz, para lá «desta nuvem de negrume» que se abateu sobre o país. mas esta contestação ainda é um processo em maturação. «há uma aceitação que ainda não fiz. ainda estou a aprender a tirar proveito das vicissitudes da vida e a compreender os meus limites», diz, confiante de que a felicidade também é um acto de protesto. «já que não posso combater os maus, já que tenho de viver neste mundo cheio de injustiças, já que não consigo impedir que uma barragem destrua o vale do tua ou convencer o presidente da república que a sua obrigação é destituir o governo, tenho de criar escapes para conseguir respirar».

esta ideia está resumida em ‘desmazelo’, «a canção que melhor ilustra o disco». ‘linda a manhã de um dia a vir, quando eu souber gozar seu frio’, ouve-se márcia a sussurrar no tema, desafiando os ouvintes a criarem realidades «para lá da miséria que nos impingem». «ninguém devia viver com pouco!».

apesar de assumir a mensagem política no discurso directo, casulo não é contaminado por essa preocupação (nunca é, garante) em criar um hino como ‘grândola, vila morena’, de josé afonso. aliás, a canção mais política que escreveu até hoje – incluía o excerto ‘a escumalha que tresanda, mas veste a rigor’ – ficou de fora do disco por não estar terminada a tempo. «de todos nós [nova geração de músicos], o pedro [silva martins, dos deolinda] é o que consegue ter o discurso mais directo, mas garanto que quando ele escreveu o ‘parva que sou’ nunca imaginou o que iria suceder. é imprevisível. bem podes fazer não sei quantos planos para ter uma determinada canção, que isso não conta nada. imaginava lá eu que ‘a pele que há em mim’, com o jp simões, ia ser recebida como foi». por isso, as angústias de márcia com o segundo disco foram outras.

escrito em duas fases, antes e depois da maternidade, a dúvida que mais assaltou márcia foi se, reunidas as 11 canções, casulo resultaria como um todo. «senti algum medo», admite, «mas, apesar de estar muito concentrada na minha filha, tive de fazer o esforço de continuar comigo própria». nada a temer. não só casulo soa mais maduro do que dá, como há uma comunhão sonora que percorre o disco do princípio ao fim.

superar inseguranças

além da determinação da cantora – que, pela primeira vez, ultrapassou a insegurança de não ser a melhor das instrumentistas e só descansou quando conseguiu concretizar exactamente a sonoridade que ouvia na sua cabeça para cada tema –, o grande responsável por essa homogeneidade é o seu marido e a sua pedal steel, «aquele som tão bonito da guitarra a chorar», que márcia sempre quis trazer para a sua obra depois de se apaixonar, há muitos anos, pelos discos de jim o’rourke. «o filipe consegue entender-me e é uma coisa muito especial ter uma pessoa que consegue realizar o que imaginaste», comenta.

outro colaborador importante, mesmo que só presente no tema ‘menina’, foi samuel úria. os dois conheceram-se em 2009, no maxime. de um lado estava márcia, a sofrer com a sua habitual ansiedade antes dos concertos. do outro, o músico mais relaxado na hora de subir ao palco que ela conhece. «estava aos saltinhos e ele dizia: ‘vá lá, não sejas assim…’», conta, revelando que esse momento ditou a encomenda que lhe fez para a letra da canção que partilham em casulo, onde ele diz à menina que se faça mulher, que ‘dance para se convencer’ e ‘destrave o pé e avance’.

quatro anos depois, a ansiedade antes dos espectáculos é a mesma, mas os voos são agora mais altos. tanto na vida pessoal, como na artística. no ano passado, ana moura pediu-lhe uma canção para o seu desfado e hoje ver o tema cantado pela fadista é «uma experiência arrepiante» e a confirmação de que gosta mesmo de se «assumir como escritora de canções». e como escreve muito mais do que o que canta, já tem inclusive temas pensados para oferecer, entre outros, a antónio zambujo, ana bacalhau e áurea. a menina márcia, hoje mulher, está assumidamente em fase de crescimento.e ainda bem. ficamos todos a ganhar.

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alexandra.ho@sol.pt