Massacre atípico serve de alertaem Cabo Verde

Um militar de 23 anos chocou o arquipélago ao assassinar 11 pessoas numa base militar. As autoridades chegaram a temer tratar-se de um efeito da crescente presença de redes narcotraficantes.

Massacre atípico serve de alertaem Cabo Verde

Terão sido «motivos pessoais» a levar Manuel António Silva Ribeiro a matar 11 pessoas no destacamento militar de Monte Tchota, na ilha cabo-verdiana de Santiago. Foi essa a informação avançada depois do primeiro interrogatório ao suspeito, detido na quarta-feira por forças policiais que até então se mostravam convencidas de estar a lidar com mais uma consequência da crescente presença no país das redes de narcotráfico internacional.

O militar de 23 anos, conhecido por Antany Silva, foi capturado na zona da Fazenda, cidade da Praia, cerca de 24 horas depois de o país ter entrado em choque com a descoberta de 11 cadáveres na base militar. Terá sido manipulado por um taxista que resistiu à ordem de fugir para uma zona isolada: «Fiquei com receio de ele me matar e deixar o meu corpo ali, como queima de arquivo. Disse-lhe que se ficássemos parados num lugar, automaticamente a Polícia poderia suspeitar de nós. Ele concordou e decidimos então ficar dentro da cidade da Praia, sobretudo na zona baixa. Estivemos três horas a circular», contou o motorista à Televisão de Cabo Verde.

Enganado por taxista

Conquistada a confiança do homicida, o taxista ainda o convenceu de que iriam pedir dinheiro emprestado a um amigo para Antany conseguir fugir. «Foi de lá, do terraço de sua casa, que chamei a Polícia», explicou Rodney, o principal responsável pela captura do autor de um massacre que o primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva diz «não fazer parte da cultura» cabo-verdiana.

Oito militares e três civis, dois espanhóis e um cabo-verdiano, foram as vítimas de Antany neste 25 de Abril trágico na ilha de Santiago. Segundo explicou a familiares na residência onde dormiu após o massacre – a quem chegou a mostrar fotos das vítimas –, a morte dos militares deve-se aos maus tratos de que Antany diz ter sido vítimas no quartel, enquanto os civis tiveram o azar de ir realizar trabalhos de manutenção de equipamentos à hora errada: «Chegaram ao local com um carro e Antany queria o veículo para abandonar o posto, mas estes terão resistido e foi nesse momento que atirou sobre eles também», relatou o jornal cabo-verdiano A Nação.

Mas nas horas que se seguiram à descoberta dos cadáveres, muito antes de se conhecerem estes pormenores, a primeira pista que as autoridades seguiram foi a de uma alegada retaliação de um grupo de narcotráfico à detenção, dias antes, de seis traficantes apanhados com 280 quilos de cocaína. Uma hipótese que não só confirmava a crescente presença do fenómeno no país como indicava a sua chegada à esfera militar.

Entreposto de cocaína

Embora não tenha sido confirmada, essa é uma ameaça que ensombra cada vez mais a atualidade do país, que já é identificado em organismos internacionais como um «importante entreposto no trânsito de cocaína sul-americana para a Europa», como refere o último relatório estratégico do controlo internacional de narcóticos publicado pelo Departamento de Estado norte-americano.

O investigador português Gustavo Plácido dos Santos, que já abordou o tema em artigos publicados pelo Instituto Português de Relações Internacionais (IPRIS), diz ao SOL que «é de esperar que as águas de Cabo Verde, fruto da sua localização geográfica, se tornem cada vez mais apetecíveis» para as redes de traficantes, que contam com a ajuda da «disseminação de grupos jihadistas» na África Ocidental. Grupos que «têm no narcotráfico uma fonte de financiamento importante», pois são eles que funcionam como «principais veículos de transporte de narcóticos através do Sahel e Sahara, em direção à Europa».

E, tal como já sucede na Guiné-Bissau há vários anos – ao ponto de um ex-chefe da Marinha do país, Bubo Na Tchuto, ter sido detido pelos EUA por envolvimento numa rede de tráfico –, Cabo Verde corre o risco de ver o fenómeno infiltrar-se nas suas instituições: «É apetecível para as autoridades o acesso a uma fonte de elevado rendimento extra», diz o especialista antes de lembrar que «basta às autoridades ser mais permissíveis no que respeita às suas competências e obrigações institucionais».

Num Estado com instituições democráticas bem mais consolidadas é possível acreditar que o fenómeno não atinja a escala alcançada na Guiné, mas Plácido dos Santos defende que apesar de as «instituições estarem preparadas e capacitadas», os «recursos limitados do Estado de Cabo Verde» tornam obrigatório o empenho da comunidade internacional. Até porque o fenómeno já «resultou na morte da mãe de um inspetor da Polícia Judiciária que estava diretamente envolvido na investigação de um caso mediático de narcotráfico», como recorda o relatório do Departamento de Estado do EUA, e outra tentativa de assassínio de um familiar de um governante foi também ligada aos negócios da droga.

«A UE e os Estados Unidos têm assumido um papel de destaque nesse aspeto e com algum sucesso», defende o investigador, recordando «as várias apreensões de largas quantias de dinheiro e droga em território cabo-verdiano». Washington tem mesmo um «papel central» no combate ao narcotráfico, como prova a realização de exercícios militares conjuntos ou o apoio no estabelecimento, em 2010, do Centro de Operações de Segurança Marítima, a instalação de radares para monitorização das águas e até a mobilização de barcos patrulha dos próprios EUA.
Uma ajuda que não deverá ser prejudicada com a chegada ao poder do Movimento para a Democracia (MpD), após 15 anos na oposição. Não só porque o partido não propõe mudanças radicais na política externa como pela determinação que demonstra em combater o fenómeno.

Ainda na quinta-feira foi anunciada a apreensão de 300 quilos de cocaína e 160 de canábis, com o diretor da Polícia Judiciária, Patrício Varela, a garantir «empenho na luta contra o crime organizado». Um combate feito com auxílio internacional: «Estas apreensões não se fazem de um momento para o outro, leva meses de informação e inteligência policial, sempre em troca de informações com outros países».