Michael Augustin: rindo de uma absurdidade de cada vez

Aqui temos um livro que não se propõe mudar o leitor dos pés à cabeça, mas que o auxilia, oferecendo a possibilidade de rir da vida do personagem, e da sua. Um Tal de Koslowski, de Michael Augustin (1953.), é um lembrete colado no meio do frigorífico impoluto a que chamamos, na falta de melhor…

Hoje podemos dizer, sem medo das estatísticas, que continuamos a ser um País de poetas. Há um em cada esquina e não é insólito que um poeta já consagrado raspe de soslaio no ombro do bardo da década que se seguirá. É a vantagem de vivermos num país pequeno.

Neste contexto, é prolífica, como sempre foi, a publicação de traduções feitas por autores portugueses, mas são raros os casos em que o tradutor agarra num livro onde o texto poético tem cariz cómico, nonsense ou que dê ares de criança travessa. Tanto os poetas que se levam a sério ad nauseam, como aqueles que publicam de forma extravagantemente desprendida, escolhem por norma (ou pressente-se essa intenção) textos duros, auto-reflexivos e consensuais. Leiam-se, como exemplos ilustrativos, as traduções que nos têm trazido nomes como Jorge Melícias ou Ricardo Marques.

Encurtando o desvio para se perceber melhor do que falamos, olhemos para o poema “De Immaculatus” que abre o livro: «Koslowski pertence a um pequeníssimo grupo de pessoas concebidas por meio de partenogénese. “Se, no meu caso, o Espírito Santo teve algo que ver com isso, ou mesmo Deus Pai, eu simplesmente não sei”, afirmou Koslowski aos amigos. Em todo caso, quando, muito jovem dormiu com a mãe consanguínea pela primeira vez, ela ainda era virgem – uma história, no entanto, que quase ninguém engoliu. “Depois do acto”, notou Koslowski com resignação, “depois do acto, algo assim é muito difícil de provar."»

Incongruências como a anterior serão uma constante e à lógica não será dado nenhum descanso. Koslowski, provavelmente cidadão de origem polaca, deambula ao longo de 81 poemas em prosa num mundo habilmente construído para parecer o nosso, mas ao qual vão sendo introduzidos elementos insólitos que, em boa verdade, tornam a realidade um engenho aperfeiçoado. Funcionando os poemas mais curtos como aforismos e os mais longos como um esticar de corda de raciocínio que de tão desfasado da ideia inicial já não importa por onde rebente, Augustin consegue, desde o início do livro, fazer-nos desejar que 1%, pelo menos, seja verdade.

A sensação de já termos passado por este território remete-nos para o Sr. Keuner de Brecht, Ramón Gómez de la Serna, Daniil Kharms, Donald Barthelme ou o “Bairro” de Gonçalo M. Tavares numa primeira linha, mas podemos também pensar no lado lúdico de Stefan Themerson e em casos particulares como o filme I Hired a Contract Killer (1990) de Aki Kaurismäki quando lemos o poema “De Outra Tentativa de Suicídio”: «A segunda tentativa de suicídio – aproximadamente três anos após a primeira – Koslowski nunca realizou. A tempo, ficou a saber do lamentável destino de um vizinho que, ao se tentar suicidar, ficou tão gravemente ferido que morreu pouco depois.»

Mas de que é feita então esta caixa espelhada que nos distrai e nos seduz? E para onde nos leva?

Como refere João Luís Barreto Guimarães (um dos tradutores, a par de João Cláudio Arendt) no texto de apresentação do livro «o autor vai pontuando os textos, por um lado, com personagens reais de cuja existência nenhum leitor, à partida, duvidaria – o padeiro, o carteiro, o vizinho, músicos, viúvas, crianças, reformados, o companheiro de bar – e por outro, de geografias conhecidas e reconhecíveis como são a casa, a rua, o restaurante, o eléctrico ou a estação ferroviária» e é com estas cartas reconhecíveis que Augustin joga e é neste contexto que introduz pequenas extravagâncias, como uma gripe que se apanha por se ter tirado um chapéu inexistente da cabeça, e outras maiores como a história da perna amputada que já sem dono repousa ao balcão do bar.

Nisto somos levados para o absurdo. Por intuirmos que não adivinharemos o que vem a seguir, por pressentirmos que a personagem não tem nenhum algoritmo caótico passível de ser decifrado, o livro consegue remeter o leitor para a nostalgia das primeiras leituras onde a surpresa é uma aura que nos acompanha, enquanto à frente da fechadura de cada autor experimentamos atrapalhados todas as chaves da argola gigante. É pela (in)consistência com que Koslowski se apresenta em cada short movie, sendo sempre imprevisível na sua conduta, nas suas motivações e posições perante o que o rodeia, que nós aceitamos de forma consciente ser apanhados no isco. Porque é-nos prometido o “prazer da leitura” e pela intransigência da errância de Koslowski chegamos ao riso e ao Humor.

Michael Augustin, numa breve entrevista dada ao Jornal de Notícias, afirmou que Koslowski é um herói e um anti-herói, cidadão mediano em todos os aspectos sobre o qual o Mundo se ri colocando-o em ocasiões especialmente absurdas. No final da entrevista parece haver duas razões para que o livro tenha sido traduzido e revisitado ao longo dos anos em diferentes países: pela transversalidade geográfica do humor (a capacidade de um alemão rir-se da mesma coisa que um chileno) e pelo absurdo se ter tornado a nova realidade (Augustin nomeia Donald Trump, a personificação do Absurdo, que acabou por ser assimilado pela sociedade dos nossos dias). É também por isso que depois de terminada a leitura e encostados à janela, à frente da televisão ou vagueando por Lisboa, deparamo-nos com as mesmas situações de sempre, que facilmente adjectivamos agora de koslowskianas.

Como objecto, Um Tal de Koslowski é uma ilha no catálogo da editora do lado esquerdo, tanto no conteúdo como no aspecto. Por um lado, o laranja corta com a série preta e cinzenta a que tinham habituado os leitores. Por outro, é a primeira tradução de outra língua que não seja o castelhano e o inglês. Este livro, na sua especificidade diferente dentro da casa que o abriga, é então um alargar de possibilidades na jornada persistente e discreta que, envolta em silêncio e nevoeiro, se tem feito nessa aventura editorial entre Coimbra e o Fundão. Por fim, quanto à tiragem, continuamos na zona modesta (ou realista?) de 120 exemplares. De punho cerrado bateríamos na mesa acusando os editores de falta de ambição, não tivessem eles publicado pérolas como “Faróis Acesos à Procura do Oceano” de Pablo García Casado de que quase ninguém tirou proveito.

Onde fica a poesia no meio desta correria? Num dos episódios, Koslowski é atropelado e fica «preso à chapa» do carro esperando auxílio. A primeira pessoa a chegar ao local é um «poeta lírico frustado» que antes de lhe administrar os primeiros socorros insiste em ler-lhe um dos seus poemas. «“O resultado disso”, comentou Koslowski mais tarde, “é que não só o meu fémur, três costelas e a minha clavícula se quebraram, como também se quebrou a minha relação com a poesia”.» Fica portanto onde deve estar. No lugar da desconfiança.

Em suma, e encostando o ombro ao ombro do leitor, afirmamos que nós, os desconhecidos que vagueamos no meio dos brainstormings, dos briefings, dos reportings e da dezena de chefias imbecis, merecemos esse consolo de fazer parte da minoria que sabe que nem só de soluços, de espasmos e de sombras se faz um livro.