Mistério

Um ano depois de entrar em vigor, o Tratado de Lisboa não resistiu, no seu articulado económico, à prova da crise.

a1 de dezembro de 2009 entrou em vigor o tratado de lisboa. um ano depois, já os governos alemão e francês o querem rever ‘cirurgicamente’. bastaria este facto para lançar sobre o intratável texto uma sentença de morte. mas pior é a razão invocada para a hipotética revisão: sonegar o direito de voto aos estados que entrem em incumprimento nas metas definidas para o défice e para a dívida.

vale a pena descodificar: a senhora merkel e o senhor sarkozy querem mexer no tratado para o tornarem ainda menos democrático do que ele já é. com efeito, o princípio da igualdade entre estados foi ferido quando o novo texto incluiu a figura da minoria qualificada de veto, que dá aos governos dos maiores países um poder de que os outros todos só por milagre podem dispor. se, agora, vingar a proposta de que os estados ‘mal comportados’ devem ser penalizados no mais elementar dos seus direitos, a ideia de igualdade no interior da ‘casa comum’ é definitivamente enterrada.

o tratado precisaria de ser larga e radicalmente revisto. não para capturar direitos de voto, mas porque o seu articulado económico não resistiu à prova da crise. segundo a comissão europeia, a salvação do sistema financeiro pelas autoridades públicas representou, desde 2009, 13 por cento do pib europeu. por causa desta operação, os países mergulharam na recessão e os orçamentos de estado foram convocados para enfrentarem as consequências económicas e sociais do buraco financeiro.

ao contrário do que o populismo vende por aí, as dívidas soberanas e os défices de estado não cresceram por termos ‘estado social a mais’, mas porque os bancos foram proibidos de falir – até o bpn. ‘concorrência livre e não falseada’, portanto…

com as dívidas públicas a explodirem, bruxelas salvou os bancos pela segunda vez. podia ter agido de várias maneiras, mas escolheu as que os próprios bancos determinaram. encontramo-nos, assim, ante uma extraordinária situação: foi-nos dito que os ‘mercados’ se acalmariam com os programas de estabilidade e crescimento (pec) e não acalmaram. juraram-nos, em seguida, que a austeridade orçamental iria repor a almejada tranquilidade. afinal, nada. e, finalmente, os governos aprovaram, no final de outubro, um pacote de coordenação económica, com sanções quase automáticas para as ‘ovelhas negras’. era, garantia-se, a peça que faltava para se restabelecer a autoridade da união… umas horas bastaram para ficarmos a saber que não serviu de nada.

a pergunta urgente é – porque falham todos e cada um dos remédios oficiais? dito de outro modo: porque é que, ante o turbilhão em que o euro mergulhou, o casal que dirige a união continua obcecado pelo rapto de direitos de voto e pela automaticidade dos castigos? o que eles sabem, e que ninguém entende, encontra-se seguramente sob segredo bancário.