Moderados e mudos

O argelino Kamel Daoud vive sob ameaça de morte por ter escrito um romance. Um magnífico romance, por sinal: Meursault, Contra-Investigação, que tive o prazer de traduzir, e foi agora publicado pela Teodolito. 

Trata-se de uma resposta a O Estrangeiro, de Albert Camus: a mesma história, contada pelo irmão do árabe que Meursault mata na praia. 

O enredo prossegue até aos dias de hoje, dando conta da progressiva islamização da Argélia. A páginas tantas, o protagonista afirma: “a religião é um transporte colectivo que não utilizo”. A crítica à progressiva tomada de poder da religião, bem como a coragem das suas crónicas na imprensa argelina, valeram ao escritor uma fatwa, acrescida de ameaças de morte diárias nas redes sociais e pelo telefone. 

Em Lisboa durante um par de dias, para um colóquio na Fundação Gulbenkian sobre as 'primaveras árabes', Kamel não consegue evitar o hábito de olhar continuamente sobre o ombro.

Pergunto-lhe se não considera mudar-se para a França, onde o seu romance acaba de ganhar o Prémio Goncourt para primeiras obras. 

“Só se na Argélia a minha filha for impedida de estudar ou de ser uma pessoa livre, com os mesmos direitos do irmão. Até lá, não. É a minha terra, é lá que é preciso lutar contra a injustiça”. 

Não tem dúvidas sobre o que é justo e injusto, e não está disposto a vergar-se: diz que prefere viver menos anos, mas com verdade e intensidade. Diz que é preciso exortar os muçulmanos moderados a que se afirmem claramente contra o fundamentalismo islâmico. 

Numa crónica sobre o recente atentado na Tunísia, perguntava aos muçulmanos: “Por que é que há marchas contra caricaturas e não há marchas contra massacres?”. 

Daoud afirma que uma medida fundamental contra o terrorismo seria a interdição ao financiamento exterior para a construção de mesquitas, bem como à importação de líderes religiosos: é por aí que começa a radicalização.

Entretanto, criou grande alvoroço esta simples frase do primeiro-ministro francês, Manuel Valls: “A luta contra o terrorismo, o jihadismo e o islamismo radical é uma guerra de civilizações que nós não podemos perder”. 

Para acalmar as hostes, Valls explicou posteriormente: “Estamos em guerra contra o terrorismo, não contra uma religião ou civilização”. 

Pergunto: a 'civilização' que lapida mulheres pelo crime de terem sido violadas, prende e chicoteia bloggers pelo crime de dizerem o que pensam, não constitui uma forma de terrorismo? 

Há milhões de islâmicos tolerantes e democratas, sem dúvida: só não entendo por que demoram tanto a manifestar-se claramente contra os governos e associações terroristas que deturpam e degradam a fé e os ideais pacíficos que professam. 

A bárbara escalada do auto-denominado 'Estado Islâmico' exige uma tomada de posição urgente. 

Não sei em que anda entretida a ONU para não ter ainda organizado uma reunião mundial de líderes a partir da qual se estabeleça uma estratégia concertada e eficaz para acabar com este flagelo. 

Ontem foi a Tunísia, amanhã pode ser Portugal, como há meses foi a França. Não é encolhendo-nos e assobiando para o ar que este novo modelo de terrorismo global, assente numa cultura de opressão e morte, vai desmoronar-se. 

Quando foi em França, ergueu-se o habitual coro de boas almas criticando o vício provocatório de desenhar. Ora, de que vício terrível padeciam os desgraçados turistas tunisinos? Gostar de sol e usar fato-de-banho é uma perversão ímpia? O 'Estado Islâmico' acha que sim. E, como se tem visto, não está disponível para qualquer espécie de diálogo nem de tolerância.