Mordomos de Salazar

Foi em Novembro de 2003. Entrei na casa do Vimieiro e ele parecia estar vivo entre os escombros: centenas de livros cobriam uma divisão quase de cima abaixo, o seu rádio de marca National parecia pronto a funcionar, revistas e jornais estavam empilhados numa arca, dezenas de garrafas de vinho da última colheita antes de…

logo à entrada, numa cómoda, repousava uma ampulheta para marcar o tempo que o estafeta levava a ir e vir com as cartas que mandava entregar nos correios. e, ao lado da ampulheta, uma balança em que pesava as cartas; um grama de peso a mais teria de ser justificado.

é curioso: ao longo das divisões encontrei móveis desmontados, uma cama desarticulada, discos, relatórios, roupas e várias gaiolas. reza a lenda que tratava os pintassilgos como se fossem pessoas, e quando chegava a santa comba era capaz de ficar longos minutos frente a eles.

o sobrinho rui, mordomo dos espectros, abriu-me a porta nessa tarde fria de quase inverno. uma porta aberta para a casa onde nasceu a 28 de abril de 1889 e onde pediu expressamente para o seu corpo ficar antes de ser entregue à terra.

assim foi cumprido. numa manhã abafada de julho de 1970, funcionários escolhidos pelo seu mérito e lealdade vestiram-no com um fato habitualmente usado pelos professores catedráticos de coimbra. no velório, duas mulheres carpiram mágoas: marta, a irmã mais velha, e a governanta maria.

a primeira mandava no vimieiro; a segunda em são bento. quando estavam juntas – muitos o dizem – escondiam os ciúmes que tinham uma da outra. e durante toda a viagem de comboio de lisboa a santa comba poucos puderam chegar perto do defunto.

antecipou por escrito todos os passos desejados. que o sepultassem em campa rasa, mas que antes disso parasse na igreja onde fora baptizado e travasse caminho umas horas na casa do vimieiro. a casa onde se refugiava em depressões, onde assistia à matança do porco em dezembro, onde crianças lhe lavavam os pés depois de pousar o sacho nas tardes dedicadas à terra.

quando nasceu, já mariquinhas (nome por que era conhecida a mãe) tinha 44 anos e o pai mais de 50. desejavam à força um rapaz, depois de quatro raparigas terem conhecido a luz. e um rapaz nasceu. chamaram-lhe antónio de oliveira salazar.

nessa casa cresceu. e em novembro de 2003 o sobrinho e um dos dois herdeiros que restavam abriu-me a porta e deixou-me sozinho com as sombras. nessa tarde percebi melhor o que foi o estado novo – pelas ruínas que ficaram e pelas pequenas e curtas histórias que a seguir conto.

o sobrinho. rui pais de sousa, neto de laura, a única irmã de salazar que não morreu casta. fiz-lhe perguntas, segui-o em deambulações pelo seu mundo, ouvi-o. usava botas iguais às do tio e jurou que, em nome de salazar, devia a si próprio uma vida de sacrifício. sem mulheres, com amigos limitados aos seus compromissos para com a memória, sem prazeres materiais.

contou-me que não havia dia em que não rezasse a nossa senhora da conceição. várias vezes lhe pedia sorte ao jogo, uma sorte que lhe desse para acertar nos números e poder restaurar a casa e os objectos de que depende. construiu uma casa fortificada onde guardou o que resta de salazar – livros, selos, canetas e moedas, sumários das aulas leccionadas em coimbra.

a sua vida é a vida do tio. puxo a conversa, faço-o dizer-me o que fez nessa manhã, confessar-me que comparou os relatórios e contas de dois anos em que o esforço da guerra colonial começava a pesar nas contas. disse-me: «sabe, não há nenhum livro do meu tio que eu não tenha lido. tento perceber o seu pensamento, colocar-me no lugar dele. leio muitas vezes em voz alta os seus discursos. sou o último guardião da sua memória, o último. vou levar tudo comigo. e já não tenho que fechar os olhos para o ver chegar ao vimieiro – com os polícias atrás, a maria. quase que sinto o cheiro da canja com ossos de peru moídos de que tanto gostava».

maria de jesus. prima em terceiro grau de salazar. viveu em são bento entre os 4 e os 8 anos. os pais, sem possibilidade de a sustentarem, pediram a marta que intercedesse – e ela lá foi. conheci-a nesse novembro e lembrou esses tempos sem especial saudade ou comoção.

as brincadeiras no jardim, a relação quase sempre ausente com salazar, as constantes tareias que maria (a governanta) lhe dava por este ou por aquele motivo, a proibição de se sentar à mesa do seu protector, as idas à missa acompanhadas pela polícia.

na aldeia desconfiavam que pudesse ser filha do presidente do conselho. o pai, cândido martins, chegou a cortar relações com amigos por desconfiança dos seus pensamentos. disse-me: «tornei a ver o senhor doutor três dias antes do meu casamento. estava com os filhos do senhor mensalão, distinto homem da terra, ensinava-os a apanhar bolota. abraçou-me perante o espanto de todos. depois revolveu o casaco e ofereceu-me mil escudos, quase o que ganhávamos num ano. pediu-me para procurar marta e eu procurei-a. ofereceu-me tecidos. procurei-o uma vez mais, com o meu filho nos braços e em dificuldades. fui a são bento e disse aos polícias quem era. não lhe devem ter dito, porque não me recebeu».

laurinda. no dia em que o corpo parou por longo tempo na casa do vimieiro chorou e acenou. não por ter partilhado muito com salazar, mas por uma vida dedicada à quinta das ladeiras. habituou-se aos trabalhos pesados e quando o presidente do conselho lá estava sabia perfeitamente o que fazer. também a conheci, também lhe conheci a memória: «lavava-lhe os pés com muita honra. ele chegava do campo, pousava o seu sacho e sentava-se numa cadeira. tirava as botas e as meias. depois dos pés lavados numa vasilha calçava umas pantufas. quando não tinha visitas, almoçava sempre de pantufas. recordo isso e as minhas marafonas feitas de sarapilheira; a menina marta era quem me dava os tecidos. brinquei muito graças a eles».

em novembro de 2003, na casa onde nasceu, senti-o quase vivo e desejei-o morto em definitivo. saí do vimieiro e durante largos minutos pensei que talvez aquela casa e aquelas pessoas não estivessem vivas. talvez fossem espectros de um portugal que não cheguei a conhecer.