Movimentos católicos querem nova comissão nacional para prevenir abusos

O anúncio da cisão na Igreja Anglicana por causa da bênção de casais do mesmo sexo agitou ainda mais as águas da Igreja Católica. Em Portugal, a CEP vai dizer hoje o que vai mudar para prevenir casos de pedofilia na instituição.

Conselhos não faltam e a Conferência Episcopal Portuguesa não deve ter tido muito trabalho para redigir o documento que apresentará hoje, sexta-feira, em Fátima. Abominável e hediondo são alguns dos adjetivos que mereceram os abusos sexuais praticados na Igreja católica portuguesa nos últimos 72 anos, revelados pela Comissão Independente contratada pela instituição. E, por isso, todos apontam caminhos. Desde o Papa Francisco à Comissão Independente, acabando em grupos de fiéis.

Comecemos por estes últimos, que escreveram uma ‘Carta aos bispos em Portugal sobre as mudanças que todos necessitamos de fazer’, que engloba diversas figuras da sociedade portuguesa. Os subscritores, que totalizam 219 nomes, pertencem ao movimento ‘Nós Somos Igreja-Portugal’, à Ação Católica dos meios sociais independentes (ACI), ao Foco Ecológico da Comunidade da Capela do Rato, Lisboa, ao GRAAL, à Metanoia – Movimento Católico de Profissionais e ao Nós Entre Nós – Grupo Sinodal, Braga. Na missiva enviada aos bispos, começam por dizer: «Este é o tempo! Este é o tempo de uma tristeza imensa e – como não dizê-lo? – de uma enorme revolta contra os abusos praticados e contra o seu encobrimento».  Antes de apresentarem três propostas – de imediato, a curto prazo e a médio prazo –, explicam por que é fundamental a união. «Queremos acreditar que, em conjunto, faremos uma profunda mudança no modo de ser, viver e pensar a nossa igreja, uma tarefa também para os próximos anos, mas a começar hoje». No imediato, isto é, até 30 dias, destaca-se a criação de uma «nova comissão independente, à semelhança da anterior, que prossiga o trabalho, continue a receber denúncias de abusos e a acompanhar casos, composta por pessoas de reconhecida competência, corajosas, íntegras, com capacidade de liderança e maioritariamente externas à Igreja, especialmente capazes no âmbito das ciências sociais, para dar sequência ao processo». Defendem também que sejam criados mecanismos que «viabilizem apoio e ajuda psicológica e psiquiátrica às vítimas a realizar fora do âmbito eclesial, e ajuda espiritual, caso elas a pretendam». Querem ainda que seja definido «um mecanismo para pedir perdão às vítimas de acordo com as suas necessidades, e realizado um momento solene e coletivo que simbolicamente projete publicamente esse pedido de perdão».  E pedem aos bispos que aceitem a ajuda do Vaticano «para refletir seriamente sobre os abusos na Igreja e como ultrapassar a atual crise».

Quanto às recomendações a curto prazo, isto é, 60 dias, os signatários pretendem que «a atividade das comissões diocesanas sobre abusos seja recentrada exclusivamente na prevenção primária e formação, de acordo com um mandato claro e com um programa discernido construído por pessoas devidamente habilitadas». Noutras alíneas, são bem claros, outra vez. «Bispos encobridores, a existirem, retirem-se de funções»; «Todos os abusadores que estejam atualmente ao serviço da Igreja sejam suspensos com caráter preventivo sempre que haja indícios minimamente credíveis sobre abusos e, quando considerados culpados à luz da moral cristã, independentemente de eventual processo judicial, sejam dispensados de funções e no caso de clérigos passando ao estado laical».

 

Manual de boas práticas

Por fim, nas recomendações a médio prazo, isto é, até seis meses, querem que «todos os agentes pastorais tenham acesso e estudem o relatório da comissão independente, estudem as conclusões, prevenindo a tentação negacionista ou de relativização do fenómeno criminal»; que «seja elaborado um manual de boas práticas que ajude os agentes pastorais a prevenir situações de risco e a identificar indícios de casos de abusos, bem como a acolher e encaminhar vítimas». As preocupações dos autores da missiva vão mais longe. Desejam ainda que «seja encetada uma reflexão de fundo sobre o impacto negativo que a perceção distorcida sobre a sexualidade humana tem vindo a causar em toda a Igreja, com a ajuda de especialistas externos», além de que «seja proporcionado um acompanhamento aos abusadores que necessariamente inclua tratamento psiquiátrico e psicológico».

O documento termina com um apelo. «Precisamos todos de cooperar na construção de caminhos que levem a Igreja a deixar de ser autoritária, clerical e arrogante e a ser mais inclusiva, mais fraterna, mais humilde e mais capaz de ler os sinais dos tempos, com Deus vivo no centro dos nossos corações. Queremos uma Igreja onde todos se possam abrigar e acolher».

Muitas destas conclusões não diferem muito das reclamadas pela comissão responsável pelo relatório dos abusos sexuais na Igreja, que abre o leque para outros cenários tais como «repensar a ligação dos abusos sexuais de crianças, por membros da Igreja Católica, ao Mandamento Sexto do Decálogo; Rever a imposição de sigilo de confissão em matéria de crimes sexuais contra crianças por membros da Igreja Católica; Consagrar, nas normas próprias do Direito Canónico, todo o tipo de crimes previstos pela Lei Penal do Estado, por forma a não criar ruído de interpretação na relação a estabelecer entre o Direito Penal e o Direito Canónico; Repensar todo o tema da sexualidade, enquanto matéria a tratar aos vários níveis no interior da Igreja e ligando-a a princípios e estratégias próprias da doutrina social da Igreja, o que, uma vez mais, só será possível quando os abusos em causa deixarem de estar em relação com o Mandamento Sexto do Decálogo [Pede que a Igreja deixe de olhar para si como vítima em que o abusador é um mero violador do mandamento da castidade enquanto são esquecidos os danos causados à criança)».

Mas, se os leigos estão preocupados com o que se passa no Interior da igreja, o Papa Francisco já tinha definido há muito as recomendações essenciais para uma Igreja inclusiva e a tolerância zero quanto a abusos sexuais e outros. Por isso, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), em 2020, juntou toda a documentação sobre a «proteção de menores e adultos vulneráveis» e lançou as diretrizes para sacerdotes e leigos ligados à vida da Igreja Católica portuguesa. E muito do que sairá da reunião de hoje de Fátima, andará à volta das recomendações apresentadas, quer da sociedade civil, como das autoridades eclesiásticas. Há dados que são inquestionáveis. As catequeses terão de ser dadas de porta aberta, as confissões terão de ser feitas em locais onde passem outras pessoas, mas não ficam por aqui. Segundo as diretrizes da CEP, «devem adotar-se os meios necessários para o conhecimento aprofundado das pessoas que se apresentam como candidatas ao sacerdócio e à vida consagrada no âmbito eclesial e ter-se um cuidado particular na sua admissão aos seminários e a outras casas de formação». Isto é, não se descarta a possibilidade de «requerer atestados civis ou certidões de registo criminal».

A preocupação com os agentes pastorais é evidente e pretende-se que tenham formação adequada para prevenir o abuso sexual de menores e adultos vulneráveis. pretende-se também instruir os padres para estarem atentos a «possíveis casos de abusos sexuais», remetendo as informações para as autoridades competentes.

Entre muitas outras diretrizes, sobressaem as proibições impostas aos agentes pastorais: «A. aplicar qualquer tipo de castigo corporal a menores e adultos vulneráveis; b) colocar um menor ou adulto vulnerável numa situação potencialmente perigosa para a sua segurança física ou psíquica; c) entrar em contacto com um menor ou adulto vulnerável de modo ofensivo ou ter comportamentos inapropriados ou com conotações sexuais, sejam essas conotações explícitas ou dissimuladas; d) estabelecer um contacto ou relacionamento preferencial com um menor ou adulto vulnerável; e) discriminar um menor e adulto vulnerável ou um grupo de menores e adultos vulneráveis; f) pedir a um menor ou adulto vulnerável para guardar segredo sobre possíveis comportamentos inadequados; g) fotografar ou filmar um menor ou adulto vulnerável sem o consentimento dado por escrito pelos pais ou tutores; h) publicar, por qualquer meio físico ou digital, imagens onde seja possível identificar um ou mais menores ou adultos vulneráveis sem o consentimento dos pais ou tutores».

Curiosamente, um dia antes da reunião dos bispos portugueses em Fátima, o Papa Francisco lançou um vídeo onde dava conta das suas preocupações. «A Igreja não pode tentar esconder a tragédia dos abusos, quaisquer que sejam. Nem quando os abusos ocorrem nas famílias, em clubes, ou noutro tipo de instituições. A Igreja deve ser um exemplo para ajudar a resolvê-los, tornando-os conhecidos na sociedade e nas famílias». O Papa foi ainda mais longe. «Pedir perdão é bom para as vítimas, porque são elas que devem estar ‘no centro’ de tudo. A sua dor, os seus danos psicológicos podem começar a cicatrizar se encontrarem respostas, ações concretas para reparar os horrores que sofreram e evitar que se repitam».

 

O medo do cisma

Enquanto se debate o problema dos abusos sexuais também se questiona o futuro da Igreja. De um lado estão aqueles que querem uma abertura, liderados pela Igreja alemã, e do outros os ditos conservadores que se opõem à ordenação de mulheres e à comunhão de recasados, além dos homossexuais terem mos mesmos direitos dos casais heterossexuais casados e que só praticam sexo no casamento. A divisão da Igreja Católica ficou mais evidente com a cisão na Igreja Anglicana, onde ocorreu um cisma, precisamente pelas razões que estão agora a ser discutidas no Vaticano e no mundo católico. Segundo noticiou o 7 Margens, a «bênção de casais do mesmo sexo provoca cisão na Comunhão Anglicana Global». Num texto assinado por Jorge Wemans, pode ler-se. «Dez primazes das Igrejas Anglicanas de África e da Oceânia, representando cerca de 75 por cento dos anglicanos de todo o mundo, assinaram um comunicado em que retiram ao arcebispo de Cantuária, Justin Welby, o papel de líder da Comunhão Anglicana no mundo, e deixam de reconhecer a Igreja Anglicana de Inglaterra como sua ’Igreja-Mãe’. A cisão, tornada pública no dia 20 de fevereiro, é uma reação à decisão do Sínodo Geral da Igreja de Inglaterra (anglicana), tomada por escassa maioria no dia 9 de fevereiro, que admite abençoar as uniões entre pessoas do mesmo sexo, embora rejeite a celebração de casamentos homossexuais».

Esta história faz lembrar-lhe alguma coisa? É óbvio que sim, a Igreja Anglicana fraturou-se precisamente pelas questões fraturantes. No que diz respeito à Igreja Católica e ao processo sinodal em curso, muitos dos chamados conservadores dizem que tal não se passará e que respeitarão sempre a vontade de Roma, apesar de estarem verdadeiramente convencidos de que Francisco nunca determinará a ordenação de mulheres.

Já os progressistas relembram que o Papa vai prolongar o seu pontificado até ao final de 2024, altura em que o processo sinodal estará concluído, prevendo estes que as transformações serão muitas e que vão de encontro ao desejo da maioria dos fiéis e praticantes. Nomeadamente a história da ordenação de padres casados, de mulheres, e uma abertura aos divorciados e á comunidade homossexual.

No meio destas confusões todas, há quem defenda, citando o evangelho segundo S. Mateus, que «ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro» – leia-se, neste caso, a conservadores e a progressistas.

*com Felícia Cabrita