Mozart e os Alpes Suíços

Um génio? Sem dúvida. Mas nem por isso Mozart deixou de ser humano – e era precisamente nesse ponto que estávamos em desacordo.

Era o último jantar do ano. O lume crepitava na lareira. Estávamos sensivelmente a meio da refeição, satisfeitos e relaxados, com um bom copo de vinho na mão. Até que a conversa recaiu sobre um tema hoje fora de moda e que trouxe uma nota de dissonância: génios. Afinal de onde surgem? Como aparecem?

Um familiar, sentado à minha direita, trouxe à colação o nome de Mozart. «Com cinco anos já compunha!», lembrou. De imediato senti-me transportado para os tempos em que tive aulas de piano e andei a aprender, com alguma dificuldade, um minuete do pequeno prodígio. Sei, por experiência própria, que a composição não era especialmente brilhante… em todo o caso não deixava de ser espantosa para a idade do autor.

«Estás a ver um dos teus filhos a compor música aos cinco anos?», perguntou-me. De facto não estava. Mas contrapus, em primeiro lugar, que não tenho grande simpatia por estas crianças que parecem quase animais amestrados e lembrei, depois, que Mozart era filho de um músico, o que pode ajudar a explicar a sua precocidade. Vendo bem, já devia ouvir música desde que estava na barriga da mãe.

«Sim, mas filhos de músicos não faltam por aí. E Mozart só há um».

O argumento era pertinente. Ainda assim, eu recusava-me a aceitar a ideia de que um talento assim brotava de forma absolutamente espontânea, como se caísse do céu, sem haver um solo fecundo e preparado onde ele pudesse florescer. Estava, aliás, a pensar no título do famoso livro de Norbert Elias – Mozart, Sociologia de um Génio. No fim de contas, até um génio tem um contexto e não pode escapar à vida em sociedade.

«A imagem que ressalta de cartas, relatos e outros documentos não se coaduna com a imagem ideal pré-concebida de um génio», escreve Elias. «Mozart era uma pessoa simples, que não deixava uma grande impressão a quem se cruzava com ele na rua, muitas vezes infantil e, no trato particular, por vezes bastante livre na utilização de metáforas que se referiam a excreções anais». Por essas e por outras, o retrato que dele fez Milos Forman no inesquecível Amadeus terá deixado a então primeira-ministra britânica Margaret Thatcher um tanto desconfortável.

Mozart um génio? Sem qualquer dúvida. Esta referência a uma faceta mais prosaica não pretende de alguma forma diminuí-lo ou derrubá-lo do pedestal onde merece estar.

Mas nem por isso deixou de ser humano – e era precisamente nesse ponto que eu discordava do meu comensal.

Quanto à origem desse génio, viria uns dias mais tarde a encontrar uma passagem iluminadora em Conversas com Goethe, de Johann Peter Eckermann. A figura em questão era Shakespeare, em vez de Mozart.

«Quando o isolamos […] tem de se considerar a sua gigantesca grandeza como uma maravilha», diz Eckermann. «Mas se o analisamos no seu país e o colocamos no terreno próprio e na atmosfera do século em que viveu […] reconhece-se que […] que muito do que ele mostra tem origem na força criadora do tempo em que viveu».

A réplica de Goethe é ainda mais eloquente. «O caso de Shakespeare pode comparar-se ao das montanhas da Suíça. Se colocar o Monte Branco no meio da região plana da charneca de Luneburgo não encontrará, de espanto, palavras para exprimir a grandeza dele. Mas se o observar na pátria própria, cheia de montes gigantescos e chegar até ele percorrendo os seus grandes vizinhos, Jungfrau, Finsteraarhorn, Eiger, Wetterhom, Gotthard e Monte Rosa, o Monte Branco não deixará de ser um gigante, mas já não espantará tanto». Creio que esta metáfora diz tudo. Os génios tocam o céu, não caem dele.