Nação em estado estável

No fim da sessão legislativa mais agitada dos últimos anos, o debate do Estado da Nação não teve história. Foram sete contra um, mas António Costa tinha um guião e cumpriu-o.

Por Raquel Abecasis

Mais do que um debate sobre o Estado da Nação, foi um debate de luz e sombras. Onde a oposição viu problemas graves e uma vida muito difícil para os portugueses nos últimos meses, o Governo louvou os resultados económicos.

Um debate sem novidades e sem notícias. Apenas uma: foi notória uma alteração de estratégia do PSD. Os sociais-democratas surgiram no debate determinados a vincar que o partido tem alternativas, que as apresentou no Parlamento antes dos socialistas e que o PS as chumbou. Outra novidade, a bancada do PSD optou por fazer marcação cerrada às intervenções socialistas. Nos problemas das regiões autónomas, da habitação, da juventude, a cada intervenção do PS correspondeu um contra-ataque da bancada do PSD. 

Habitação, educação e saúde dominaram as críticas

Ao retrato ‘cor-de-rosa’ traçado pelo primeiro-ministro na abertura do debate do Estado da Nação, seguiram-se duras críticas por parte de todos os partidos da oposição. A exceção foi Rui Tavares, o deputado único do Livre, que António Costa acabou por considerar como mais um deputado socialista, sublinhando que «está muito bem sentado no hemiciclo» (entre os deputados do PS).

Fiel ao seu estilo habitual, André Ventura fez a intervenção mais crítica. O líder do Chega acusou António Costa de, apesar dos muitos afazeres, ter tido tempo para «escrever o relatório da TAP». Depois visou o primeiro-ministro por falar de um país que não existe e deu como exemplos o que se passa na saúde, na educação, na habitação e na imigração. No final da sua primeira intervenção, Ventura sustentou-se nos casos recentes de imigrantes ilegais no país para dizer que Costa está a transformar o país na «casa de alterne da União Europeia».

Indiferentes aos bons resultados da economia, proclamados pelo Governo, da esquerda à direita, todas as bancadas insistiram nos temas que dizem mais estar a preocupar os portugueses. Com argumentos diferentes, do Chega ao PCP, todos os partidos descreem no sucesso do pacote Mais Habitação, aprovado no final desta sessão legislativa apenas com os votos socialistas.

A saúde está em acelerado estado de degradação – esse é também o diagnóstico que todos os partidos levaram ao debate, com o líder da Iniciativa Liberal a convidar António Costa para uma visita a um dos centros de saúde mais problemáticos na área da grande Lisboa, para ouvir as dificuldades dos que não conseguem marcar consultas. Não faltaram também críticas ao impasse que se vive no setor da educação. Os deputados quiseram saber como se está a preparar o próximo ano letivo e se haverá professores que cheguem para que nenhum aluno fique sem aulas. Perguntas sem resposta por parte do ministro João Costa.

Costa não respondeu a quase nada

Como também já vem sendo hábito, António Costa fugiu o quanto pôde a responder às questões mais concretas.

Refugiado na possibilidade de apenas responder no final de uma longa lista de perguntas, de todas as bancadas, incluindo a bancada socialista, o primeiro-ministro não respondeu a várias perguntas. Nomeadamente aos números negros da saúde, ou às dificuldades para pagar o empréstimo à habitação, ou aos salários que não chegam ao fim do mês. Entre as muitas questões sem resposta, destaque para uma delas: Mariana Mortágua instou António Costa a pronunciar-se sobre «as práticas reiteradas de corrupção no ministério da Defesa». A líder do Bloco de Esquerda foi, aliás, a única que trouxe o caso do ex-secretário de Estado, Capitão Ferreira, para o debate. E como não insistiu na pergunta e mais ninguém o referiu, o líder do Governo aproveitou e mais uma vez evitou falar sobre a questão.

Ainda o debate estava muito longe do seu final e já António Costa se despedia dos deputados com um comentário em vez de respostas: «A oposição não identificou nenhum problema que o Governo não tivesse identificado e sobre o qual não esteja a trabalhar».

Ministro da saúde, o único a dar o peito às balas

Ainda em estado de graça e com o país ainda a dar-lhe o benefício da dúvida, Manuel Pizarro foi o ministro escolhido para uma intervenção de fundo sobre as reformas em curso no setor.

Com algum tempo para responder às muitas perguntas dos deputados, Manuel Pizarro foi frisando que as «reformas levam tempo mas estão a produzir resultados».

‘A cigarra é o Governo e as formigas são as famílias’

A frase foi dita pelo deputado do PSD, Hugo Carneiro. Mas a ideia perpassou as várias intervenções da oposição.

A direita acusa o Governo de estar a viver «à custa de uma elevadíssima carga de impostos que fizeram com que o Governo se tornasse o grande beneficiário da inflação». Miranda Sarmento classificou o Governo de António de Costa de «Governo do empobrecimento» e voltou à máxima de um executivo que «cobra impostos máximos e presta serviços mínimos».

Mas nem a esquerda vê benefícios para os portugueses com a maior arrecadação de impostos.

Paula Santos, líder parlamentar do PCP, deu voz à luta que se vive nas ruas porque «os trabalhadores, todos os dias, fazem contas para ver como é que os salários chegam ao fim do mês». Os comunistas acusam o Governo de estar a cavar um país de contrastes, que valoriza as privatizações e os grandes interesses mas onde «nunca há dinheiro para pagar salários e pensões».

Mariana Mortágua, que se estreou como líder do BE no frente a frente com António Costa, acusou também o Governo de estar a usar a inflação para «concentrar riqueza e privilégios» e de não responder ao crescente número de trabalhadores precários. A nova líder do Bloco de Esquerda diz que o Governo socialista tem uma atitude «paternalista» em que prefere dar apoios a resolver os problemas dos trabalhadores. Numa intervenção em que se notou o novo estilo da liderança bloquista, Mariana Mortágua afirmou que o Governo tem «cadastro no incumprimento de promessas», referindo-se às promessas na saúde e na habitação. E sobre este último tema declarou: «O Mais Habitação já fracassou».

José Luís Carneiro, um delfim para encerrar o debate

Foi um dos poucos ministros que não causaram problemas a António Costa ao longo dos últimos meses.

O ministro da Administração Interna tem vindo a ser elogiado pela forma discreta e eficaz como tem gerido os dossiês mais difíceis do seu setor. Os elogios têm suscitado especulações sobre o seu futuro político e as suas ambições. António Costa não fica alheio ao nascimento de uma nova estrela entre os seus ministros, e terá tido em conta esse facto na escolha de José Luís Carneiro para encerrar o debate do Estado da Nação. Num discurso sem novidades em relação ao que António Costa foi dizendo ao longo da tarde, a parte mais interessante esteve no seu início, quando afirma que o país tem «uma liderança determinada e respeitada no plano internacional». Uma referência à projeção internacional de António Costa que não deverá ter sido incluída por acaso.

A máquina de comunicação que António Costa montou mais rapidamente do que o Conselho de Prevenção da Corrupção (como lhe foi referido pela oposição ao longo do debate), não descura pormenores.

No final da sessão legislativa e a iniciar um ano político que marca um novo ciclo eleitoral, é importante manter todos os cenários em aberto para o futuro do primeiro-ministro. José Luís Carneiro foi o ministro escolhido para pôr em cima da mesa pela primeira vez o cenário de que António Costa pode ser candidato nas eleições de 2026.

Com ar tranquilo a assistir ao debate e aos sinais das entrelinhas esteve Pedro Nuno Santos que Costa aproveitou para dizer que está em alta.

O último debate antes de os políticos irem a banhos não trouxe novidade. Quanto às polémicas dos últimos meses? Nada a dizer. O primeiro-ministro, sem o referir, continua a achar que as sucessivas crises que afetaram o Governo não preocupam os portugueses.