Nelson e Francisco

Um homem partiu, outro chegou. 2013 foi o ano do adeus a uma das maiores personalidades planetárias – e não apenas africanas – do nosso tempo: Nelson Mandela. E foi também o ano da surpreendente revelação de um Papa que logo no início do seu pontificado lançou sinais quase revolucionários de renovação da Igreja, de…

foi o primeiro papa a escolher o nome inspirador de francisco. e, apesar de jesuíta, a referência que o identifica é a figura que terá encarnado mais veementemente a lição de solidariedade e compaixão de cristo com a humanidade sofredora: francisco de assis.

as raízes, a formação e os campos de intervenção destes dois homens são os mais diversos: um político sul-africano que combateu o sistema de apartheid no seu país – pagando essa luta intransigente com 27 anos de encarceramento – e um bispo argentino que, à partida, era associado às correntes conservadoras da igreja.

e, no entanto, ambos acabam por representar – neste ano da despedida de nelson e da anunciação de francisco – um idêntico testemunho da consciência humana contra as injustiças do mundo.

numa crónica sobre os 90 anos do ícone sul-africano, escrevi aqui: “mandela lançou a semente, abriu uma porta – para o horizonte da humanidade, não apenas para um continente – mas seria impossível pedir-lhe que, apenas com a inspiração do seu exemplo, tivesse resgatado a áfrica das desgraças que ameaçam devastá-la. imagina-se o que mandela deve sofrer por causa disso nestes últimos anos de vida. mas é ele próprio que obstinadamente recusa o estatuto de homem providencial (tendo-o sido, embora, para a liquidação pacífica do apartheid)”.

o que escrevi sobre mandela poderia também aplicar-se, em larga medida, ao papa francisco. a diferença que ele trouxe em relação aos seus antecessores – pelo menos depois do saudoso joão xxiii – traduz-se na recusa do providencialismo e na busca da proximidade com os excluídos e perseguidos dos novos apartheids da desigualdade económica e social. francisco pretende ser um homem entre os homens, rejeitando um pedestal inacessível aos outros mortais. ele sabe que a sua autoridade não provém da inacessibilidade papal, mas dessa proximidade com aqueles que mais sofrem.

as denúncias veementes de francisco sobre o capitalismo “que mata” são cada vez mais inseparáveis do seu propósito de humanização da igreja, favorecendo o regresso dos que foram expulsos do templo (porque fazem parte de minorias sexuais ou infringiram a indissolubilidade do matrimónio católico). e são inseparáveis, também, do seu combate contra o fechamento e corrupção dos círculos eclesiásticos, a começar pelo vaticano: “prefiro uma igreja ferida e suja por andar na rua a uma igreja interessada em ser o centro e que acabe enclausurada num emaranhado de obsessões e rituais”.

o legado de mandela como protagonista histórico do fim do apartheid não bastou para que a áfrica do sul e o conjunto da áfrica escapassem à terrível tragédia social que continua a devastá-las. e é duvidoso que os esforços de francisco permitam transformar radicalmente uma igreja enquistada por séculos de regressão dos valores cristãos.

seja como for, a história do combate aos apartheids raciais, económicos, políticos e religiosos ficará marcada pelo exemplo destes dois homens – um que já partiu, outro que acaba de chegar -, enquanto sinal de esperança para um mundo que ainda não desistiu de acreditar.