Oncoplutocracia. Diferenças que dão que pensar

Nos Estados Unidos, um dos países com melhores indicadores quando se olha apenas para a média, negros têm muito pior prognóstico  

Se na Europa a diferença mais marcada é entre os países nórdicos e os países de leste, a nível mundial há assimetrias bem mais gritantes na sobrevivência ao cancro. E mesmo entre os países com melhores resultados, alertam os investigadores, é preciso perceber que os rendimentos e a cor da pele ainda fazem a diferença. 

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O alerta é de Michel Coleman e Claudia Allemani, co-autores do estudo ontem publicado na revista médica “Lancet”. Ambos remetem por exemplo para uma análise mais detalhada do que se passa nos Estados Unidos, que lideram por exemplo a sobrevivência no cancro da mama. Um trabalho publicado em dezembro pelo Centro para Controlo e Prevenção de Doenças norte-americano, e que contou com o apoio da Escola de Higiene e & Medicina Tropical de Londres, revelou que caucasianos e negros estão longe de ter o mesmo prognóstico no país. No caso do cancro do cólon, a sobrevivência a cinco anos dos norte-americanos negros é idêntica à que se verificava há duas décadas entre os caucasianos.

Combater as desigualdades O estudo CONCORD-3, agora divulgado, vem alertar para outras desigualdades. O cancro da mama, a que hoje sobrevivem a cinco anos nove em cada dez mulheres diagnosticadas nos países mais avançados, ainda apresenta resultados do passado em países como a Índia, onde a sobrevivência não vai além dos 66%. 
E se a maioria das crianças hoje sobrevivem às leucemias linfoblásticas agudas nos países mais desenvolvidos, nas regiões mais pobres o cenário é bem diferente. No Equador, apenas 49,8% das crianças sobrevivem cinco anos após o diagnóstico, contra uma sobrevivência de 95,2% na Finlândia.

“Numa era em que a cobertura universal de saúde é um imperativo, as desigualdades desoladoras nos resultados apresentados pelo CONCORD-3 revelam os principais problemas por detrás do controlo do cancro a nível global, do financiamento insuficiente às falhas políticas por via défices em forças de trabalho fundamentais para o tratamento oncológico, como cirurgia e radioterapia”, lê-se num comentário publicado na revista “Lancet” e que acompanha o estudo. “Os países com maiores rendimentos gastam bastante no controlo e investigação do cancro, mas os recursos dedicados a reforçar a capacidade nos países de baixo e médio rendimento permanecem pobres.” Os autores falam mesmo de uma “oncoplutocracia”, um sistema em que o progresso no cancro só beneficia os países e os doentes mais ricos.

Mais registos Outro apelo deixado pela análise passa pelo reforço dos registos oncológicos. Por exemplo no continente africano há dados de anos de apenas seis países e só foram incluídos 40 mil doentes no estudo. “Os governos precisam de reconhecer que registos oncológicos de base populacional são ferramentas vitais em termos políticos que podem ser usadas para avaliar quer o impacto das estratégias de prevenção quer a eficácia dos sistemas de saúde para todos os doentes diagnosticados com cancro?

Faz sentido um Registo Oncológico Nacional (RON) como o que está a ser implementado em Portugal, que até aqui tinha quatro registos regionais? Michel Coleman diz ter dúvidas: “Penso que é boa ideia manter os registos regionais, já que os coordenadores têm contacto direto com os hospitais. Estou a par do debate em Portugal mas não tenho a certeza de que esteja a avançar no sentido certo”, disse ao i, recusando por exemplo que venha a fazer-se comparações entre hospitais. “São registos de base populacional que dão informação ao nível da região. Não é sensato produzir estimativas de sobrevivência ao nível de hospital pois é muito difícil comparar o ‘case mix’, a complexidade dos casos seguidos em cada unidade.” 

Nuno Miranda, diretor do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas, reconhece que o debate existe. E se Coleman é natural de França, onde não existe registo nacional, contrapõe com o exemplo dos países nórdicos, que estão bem cotados nos resultados e adotaram este modelo. Depois das dúvidas suscitadas nos últimos anos, o RON vai mesmo ser uma realidade. Os trabalhos de integração de sistemas começaram a 1 de janeiro, revelou Nuno Miranda.