Ozark. Para além do bem e do mal, uma moral para os dias de hoje

A nova série da Netflix deixa claro que a ficção televisiva alcançou já aquela maturidade que se prende com o ter um vasto legado, uma série de exemplos no passado ao qual pode ir beber sem, no entanto, ficar preso a ele

Além de toda a perturbação económica, da forma como envenenou as expectativas de boa parte da classe média, fez da pobreza uma aventura ainda mais drástica e impiedosa, atirando tantos para um modo de sobrevivência fantasmal, a crise financeira teve um inimaginável custo moral. A cortina caiu e a esperança, afinal, foi das primeiras coisas a morrer. Com ela, arrastadas, muitas ilusões foram ao fundo, e os ideais que serviam de bóia não aguentaram. As letras pequenas são hoje as que primeiro vamos ler. De algum modo, perguntamo-nos sempre: Como é que nos estão a tentar lixar? A confiança tornou-se um luxo acima das nossas possibilidades. O subtexto social alterou-se, e parece agora fazer notar que a realidade não terá a menor complacência para com os ingénuos.

“Ozark”, a nova série da Netflix, marca esse ponto de inflexão, o momento em que uma decisão arriscada de um chefe de família faz dele um peão num jogo muito perigoso, vendo-se obrigado a arrastar a família para longe de tudo o que tinham como raízes e a despedirem-se de tudo aquilo a que achavam que tinham direito.

Marty Byrde é o protagonista que, na interpretação de Jason Bateman, se transforma num sublime ensaio sobre esse raro talento de alguns homens que viram “o destino seguir-lhes o rastro como um louco com uma navalha na mão” (Arsenii Tarkovskii) manterem, não a calma nem a frieza, mas o terror como pura motivação. Estamos a falar de um gestor de fundos, um génio meticuloso que, no entanto, mal sobrevive ao quotidiano que fez da sua vida abastada nos subúrbios de Chicago o típico cenário de um drama insosso. Os dois filhos estão bem, a educar-se e a crescer de forma ligeiramente insubordinada, e, naturalmente, estão-se nas tintas para ele. A mulher – interpretada de forma igualmente pungente por Laura Linney –, depois de um hiato de 15 anos, tendo feito uma pausa na carreira para criar os miúdos, na volta deu com um mundo onde as segundas oportunidades são como trevos de quatro folhas. Em vez de antidepressivos, preferiu arranjar outro homem e compensar-se, assim, não apenas da falta de atenção do marido, como da falta de sentido de uma existência pacata e sem desafios.

Esta série não chega a ter o arranque convencional. À partida, já sabemos que, a não ser que a velocidade dos acontecimentos os cole nas suas posições, cada um dos elementos desta família irá arranjar a sua fuga. Basta o primeiro episódio para que estas circunstâncias extraordinárias se alinhem e atirem para segundo lugar as crises pessoais de cada um, exigindo-lhes todas as suas forças para se agarrarem à vida.

Depois de se saber que Marty decidiu há uns anos tratar das operações de lavagem de dinheiro para o segundo maior cartel de narcotraficantes mexicano, e que o melhor amigo e parceiro na firma de gestão de fundos achou que ninguém daria por uns milhões desviados, vai entrar em cena Del (Esai Morales), a figura que representa o cartel daquele lado da fronteira, e aliar um sedutor elemento ao perigo, emprestando algum glamour diabólico ao tipo de vilões que raramente fogem à lógica mais pragmática do empresário terrorista, que tortura e aniquila quem for preciso para alcançar os objectivos trimestrais para agradar aos facínoras apalermados que têm a persistência para chegar ao topo deste tipo de cadeias alimentares.

Antes que o episódio acabe, vários corpos vão desaparecer em barris de ácido, e Marty consegue uma moratória, tirando do bolso da sua ingenuidade uma brochura turística de um desses paraísos provincianos cheios de potencialidades: o Lago dos Ozarks. Trata-se de uma reserva artificial de 21 mil hectares com uma linha costeira que se estende ao longo de 1850 km. A ideia que Marty vende a Del é que será mais fácil deslocar a operação de lavagem de dinheiro para aquela zona que, a cada época balnear, ganha um tremendo impulso, deixando a cidade de Chicago, onde as autoridades têm o nariz metido em tudo.

A série não evitou comparações apressadas e levianas com “Breaking Bad” e outras. Se é certo que “Ozark” não surge por geração espontânea nem alija certas influências, mostra ter estado atenta, absorvido lições, percebendo que o que é fulcral na construção de uma grande série dramática passa por aceitar que a ficção deve ser capaz de retirar a realidade dos seus moldes ríspidos, tantas vezes esvaziados de algo mais carismático do que a pura brutalidade e a selvajaria. Mas esta não é uma série sobre um homem desesperado que vai gradulamente abandonar os seus valores e tornar-se mau. Esta é uma série para além do bem e do mal, que sabe como o verdadeiro espírito da tragédia força o homem a conviver naturalmente com o pior e melhor de si, a fazer das tripas coração e a tirar força dos aspectos mais encorajadores como dos mais tenebrosos da humanidade. Isto, sem cair na amoralidade, simplesmente construindo uma moral que possa guiá-lo num território inexplorado.

Se há uma coisa que distingue esta série de tantas outras, é o facto de os imperativos da acção não se imporem de tal modo aos personagens que os desfigurem, que os verguem ao ponto de lhes retirar o sentido de si mesmos. Não há estúpidos aqui, mesmo se voláteis: se ferida e em perigo, cada personagem tem em vista as ramificações da sua auto-preservação. Os peões não deixam de considerar o seu destino e sacrifício de forma diferente que o cavalo, o bispo, a rainha ou o rei. Há diálogos que são fabulosos exercícios intelectuais. Momentos em que os personagens consideram todas as suas alternativas, ponderam, escolhem, agem. Nada é acidental e, no entanto, nunca um plano deixou tanta margem à surpresa. No fim, a moral da história é que o importante é salvar alguma moral.