Pesadelos em cadeia

O terramoto e a catástrofe nuclear que se seguiu no Japão remeteram para segundo plano a guerra civil na Líbia e os outros conflitos no Médio Oriente.

a crueldade da natureza contra os japoneses beneficiou o coronel kadhafi, que assim pôde prosseguir mais à vontade a chacina do povo líbio e recuperar o terreno perdido para os rebeldes.

chegara a falar-se na hipótese de criar uma zona de exclusão aérea que impedisse a aviação militar de bombardear a população civil, mas ninguém – exceptuando, porventura, a frança e o reino unido – se mostrou disponível para ser consequente.

a união europeia, os estados unidos, a nato, a onu, a liga árabe, que, em coro, haviam acusado o líder líbio de crimes contra a humanidade e decretado a expulsão do seu regime da comunidade internacional, acabaram por adoptar a posição habitual nestas circunstâncias: não fazer nada, nem sequer o gesto mínimo de enviar armamento aos rebeldes para se defenderem de um serial-killer à solta.

ora, sem nada a perder, ao louco furioso restava apenas uma saída: reconquistar a todo o custo o único reino onde ainda julga poder salvar a pele.

durante semanas, incutiu-se nos revoltosos a ilusão de que a sua luta não seria em vão e os crimes do ditador não ficariam impunes. agora, quem poderá ficar surpreendido se a raiva dos que se revoltaram e foram traídos nas suas expectativas se transformar em desespero – e esse desespero for arregimentado pelo islamismo radical, não apenas na líbia mas nos países vizinhos?

não haverá então lugar para surpresas, mas para cómodas conclusões: afinal, no mundo árabe e muçulmano, não existem mesmo alternativas entre as tiranias mais ou menos laicas e o fanatismo religioso…

a dimensão apocalíptica da tragédia japonesa não poderia deixar de ocupar o primeiro lugar da cena internacional, com esta vantagem sombriamente irónica: aí, a culpa principal não coube aos homens mas à natureza. e a impiedade da natureza, consolemo-nos ao menos com isso, é capaz de ir bem mais longe do que a crueldade humana…

mas se os terramotos são fenómenos ainda inelutáveis, do japão veio outro alerta que apanhou desprevenidos os que se haviam instalado no conforto de um regresso em força à energia nuclear como alternativa ao petróleo.

ressuscitou o fantasma de tchernobil e, com ele, o pesadelo de termos de conviver no futuro com cenas de terror que julgávamos já datadas e improváveis. mas a realidade ultrapassa sempre a ficção, como vimos nas imagens bíblicas do tsunami no japão e do pânico nuclear que lhe sucedeu.

a simples ideia de um país inteiro, e um país tão populoso como o japão, depois de hiroshima e de uma histórica instabilidade sísmica, estar constantemente vulnerável ao horror dos elementos, é qualquer coisa de tão esmagador que reduz os nossos problemas portugueses a uma infinita pequenez…

e, no entanto, a verdade é que, à nossa escala minúscula, os tempos são também de pesadelo, embora não falte quem insista em brincar com o fogo de irrisórios jogos políticos que apenas sublinham essa infinita pequenez…

o presidente da república introduziu, no seu discurso de posse, uma vontade de ruptura política com o actual governo, cuja consequência lógica seria a convocação de legislativas antecipadas. foi declarado, aliás, o seu propósito de cavalgar a onda das manifestações do passado fim-de-semana, capitalizando o clima de descontentamento social – que não se reduz, como se viu, à nova geração dos precários – para um ajuste de contas decisivo com sócrates.

as manifestações foram muito concorridas, mas o seu objectivo final diluiu-se num protesto sem consequências práticas (não estávamos na praça da libertação do cairo), até porque josé sócrates, com a cumpli- cidade europeia, já preparara uma resposta fulminante, antecipando-se à iminência da entrada do fmi e do fundo de estabilidade europeu em portugal.

sócrates disse aos dirigentes europeus o que eles queriam ouvir – e eles só têm ouvidos atentos para o que significa mais e mais austeridade – e, com esse trunfo na mão, regressou a lisboa decidido a fazer um xeque-mate a toda a gente: ao presidente (que, entretanto, já parecia intimidado com as interpretações sobre o desejo de ruptura inscrito no seu discurso), ao psd e à oposição em geral (sem contar com o seu próprio partido, que olimpicamente despreza) mas, acima de tudo, ao comum dos portugueses que, com manifestações de precários ou sem elas, não tem outra alternativa senão submeter-se a todos os pec que forem necessários para salvaguardar a soberania e a honra do país.

sendo as coisas o que são, todos os formalismos institucionais e democráticos seriam dispensáveis e inúteis, servindo apenas para perder tempo e prejudicar o impacto das medidas negociadas em bruxelas: informar o presidente, consultar os partidos ou os parceiros sociais, reunir o conselho de ministros…

mas sócrates sabia perfeitamente que aquilo que estava a fazer era uma chantagem pura e simples – com base no velho preceito autocrático ‘ou isto ou o caos’ –, a que ninguém poderia submeter-se sem perder literalmente o respeito por si mesmo. não prescindiu sequer do mais despudorado cinismo, ao tomar a iniciativa de precipitar ele próprio, embora endossando a culpa aos outros, a antecipação de eleições.

não há cenários futuros, no nosso actual teatro político, que não contenham a sua parte de pesadelo. mas o pesadelo principal passou a ser a reeleição de alguém cujo desprezo pela democracia e pela dignidade das instituições e dos cidadãos ultrapassou os limites do suportável. se a rendição incondicional a sócrates é o preço para evitar a vinda do fmi, então que venha o fmi.

p. s. – em matéria de falta de cultura democrática, sócrates está bem acompanhado por cavaco silva, como mostra o apelo do presidente da república aos jovens para que imitem o esforço patriótico dos antigos combatentes das guerras coloniais.