Picoas: arguido evitou prisão com dados que já estavam no processo

Escutas revelam que TVI estava na casa de Armando Pereira na véspera das buscas. O genro do empresário fugiu nesse dia.

O juiz de instrução da Operação Picoas, Carlos Alexandre, entendeu aplicar a um dos arguidos, Hernâni Vaz Antunes, para quem o Ministério Público (MP), após a sua audição em tribunal, havia solicitado a prisão preventiva, uma medida de coação menos gravosa – a detenção domiciliária -, sob a alegação de que este empresário bracarense havia, durante a fase do interrogatório, revelado matéria relevante para o processo, a qual afinal – concluiu o Nascer do SOL – fazia parte do processo desde o início.

Com efeito, atendendo às alegações do causídico Rui Patrício, defensor do arguido, escreveria Alexandre, na terça-feira passada, no seu despacho sobre a aplicação das medidas de coação: «Tem razão o ilustre advogado de Hernâni Antunes quando diz que Hernâni colaborou ao longo de quase três dias [de interrogatório], esclarecendo a sua participação pela forma que entendeu ser a mais adequada também aos seus interesses, mas o facto é que, em alguns casos de que foi feliz exemplo a repartição dos ganhos da comissão pelos direitos televisivos, o arguido foi além do que a indiciação permitia inferir».

Só que a matéria relacionada com a repartição de ganhos alegadamente indevidos resultantes de contratos de aquisição de direitos de transmissão de jogos de futebol assinados com alguns clubes portugueses consta não só no inquérito da Altice como em dois outros casos abertos pelo MP no mesmo dia que também tinham Carlos Alexandre como juiz de instrução: a Operação Cartão Vermelho, visando o anterior presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, e a Operação Prolongamento, incidindo sobre o presidente do FC Porto, Jorge Nuno Pinto da Costa. Os três processos tinham um personagem em comum: um empresário desportivo também de Braga, o advogado Bruno Macedo, que os investigadores dizem ter servido de placa giratória para a distribuição de comissões ilegítimas com ligações aos dois dirigentes clubísticos.

Comissões de direitos televisivos

Foi aliás uma informação sobre a circulação de dinheiro resultante dessas comissões que despertou as autoridades fiscais e esteve na base dos três dossiês já antes acompanhados por Alexandre, uma vez que tudo começou com um processo da Inspeção Tributária de Braga relacionado com um pedido de reembolso de uma sociedade de Macedo.

A questão das comissões de direitos de transmissão de jogos surgiu agora na Operação Picoas apenas como efeito colateral das investigações, orientadas para o apuramento de matéria criminal relacionada com a realização de supostos contratos de fachada no âmbito da operadora de telecomunicações Altice (o grupo multinacional que em Portugal é dono da distribuidora MEO), dizendo respeito tanto à aquisição de equipamentos e serviços como à alienação de parte significativa do seu património imobiliário.

Tais contratos, efetuados com a intermediação de um conjunto de empresas controladas por Hernâni Antunes ou por testas-de-ferro seus (realidade que admitiu nos interrogatórios), permitiriam a extração de alegadas comissões ilícitas que iriam parar a contas offshore em paraísos fiscais cujos beneficiários finais seriam o próprio empresário bracarense ou o seu amigo Armando Pereira, de Vieira do Minho, também arguido, cofundador da multinacional (e de cujo capital, segundo o MP, possuirá ainda 22 por cento). A Altice poderá ter sido assim prejudicada em 250 milhões de euros (gastos a mais devido à intermediação das sociedades de Antunes), enquanto o erário português pode ter deixado de cobrar, devido a evasão fiscal, uma quantia superior a 100 milhões.

Contratos apreendidos durante a investigação indiciam que Bruno Macedo, como intermediário do negócio dos direitos televisivos, a serem adquiridos pela Altice-MEO, terá em 2015 recebido da operadora 10 milhões de euros, metade dos quais dividiu em partes iguais por dois homens da confiança de Pinto da Costa e de Hernâni Antunes. Com este último, teria aliás acordado receber da Altice, mais tarde, outro tanto – o que totalizaria um custo de 20 milhões de euros pelos direitos televisivos -, mas a segunda tranche nunca teria sido paga, por se temer que o expediente estivesse a levantar suspeitas junto do fundador e presidente do grupo Altice, o franco-marroquino Patrick Drahi (que também detém a nacionalidade israelita e portuguesa).

O MP não valorizou as declarações de Antunes sobre este tema, tendo em conta que se tratava de prática já antes conhecida dos outros três processos (e que, aliás, viera a público em anos anteriores através de diversos órgãos de informação), deduzindo-se que, se o arguido, no interrogatório, resolveu falar sobre ela não terá sido por iniciativa própria, mas porque foi confrontado pelos investigadores com os dados que já possuíam. Nas alegações após a inquirição, escreveu aliás o procurador da República Rosário Teixeira (que promove a acusação juntamente com o inspetor tributário de Braga Paulo Silva): «A confissão, em sede de interrogatório, de ser o real beneficiário final das participações sociais das sociedades elencadas na imputação é, para o arguido, a rendição ao acervo de prova apresentado, mas significa, por outro lado, a necessidade de cerca de quatro anos de investigação e a utilização de meios de prova intrusivos para que se alcance a evidência de quem é dono do conjunto de sociedades identificadas nos autos».

Investigadores perplexos

Invocando «que o perigo de perturbação do inquérito é muito elevado e foi mesmo já consumado» (na medida em que Vaz Antunes, alertado para a iminência da Operação Picoas mais de uma semana antes do seu desencadeamento, a 13 deste mês, andou fugido da sua base em Braga por vários locais – incluindo Espanha -, antes de se entregar às autoridades numa esquadra de Matosinhos, três dias depois do início das buscas e da detenção de Armando Pereira), o MP solicitou a Alexandre a manutenção da prisão preventiva apenas no seu caso, alegando que «qualquer medida não privativa da liberdade, como a obrigação de apresentação periódica e simples proibição de contactos, são, nesta fase, completamente desadequadas, já que não permitem fazer face ao perigo de continuação da atividade criminosa, ao perigo de perturbação do decurso do inquérito e ao perigo de fuga».

Deste modo, segundo uma fonte judicial, a decisão alternativa de prisão domiciliária (com proibição de o empresário contactar com os restantes arguidos e as empresas ou pessoas de alguma forma mencionadas na investigação), tomada por Alexandre, naquele que terá sido o seu último ato como juiz adstrito ao DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal), terá causado alguma perplexidade entre os investigadores.

‘Queimar’, ‘triturar’ e ‘formatar os computadores’

A mesma perplexidade terão sentido os representantes do MP e da Autoridade Tributária quando, no período de vigilância aos suspeitos que precedeu o desencadeamento das buscas e detenções, perceberam que alguém, conhecedor dos meandros da Operação Picoas, terá violado o segredo de justiça, comunicando para o exterior a iminência da ação policial, o que acabou por chegar aos ouvidos de Vaz Antunes, Armando Pereira e outros arguidos, como o economista Álvaro Gil Loureiro (colaborador do empresário bracarense e mentor da arquitetura financeira que levou à criação de sucessivas sociedades em cascata, permitindo a canalização dos ganhos obtidos com os negócios da Altice em contas offshore no Dubai controladas pelos outros dois).

Hernâni Antunes reconheceu aliás ter dedicado esses dias à destruição ou ocultação de matéria que pudesse servir de prova a carrear para os autos. A 5 de julho, chamou Gil Loureiro para lhe comunicar que, na semana seguinte, iria haver uma operação que caía em cima deles e que por isso era preciso eliminar documentação. Como estavam sob escuta, pode-se dizer que os investigadores assistiram em direto à destruição de provas. As palavras de ordem de Antunes eram: «queimar», «triturar», «formatar os computadores», «limpar e trocar telemóveis» e «desviar» os documentos principais. Tudo isso foi levado a cabo no fim de semana anterior ao lançamento da operação, mas depois das detenções o MP, com a colaboração do empresário, conseguiu recuperar 130 pastas com documentação que haviam sido colocadas a bom recato.

O próprio Carlos Alexandre, no seu despacho sobre as medidas de coação, reconheceu a existência da fuga de informação: «O arguido [Antunes] confirmou ter sabido por pessoa das suas relações, na última semana de junho, primeira de julho, que talvez viesse aí uma fiscalização das Finanças de Braga e que era preciso ter cuidado, do que deu boa nota a Gil Loureiro, que o confirmou, e a Armando Pereira, a quem também o terá referido, pois acabou por reconhecer no seu interrogatório que, em 12 de julho, em contacto telefónico com este último, terá referido: ‘Enganámo-nos, afinal não há nada’».

 Por sua vez, acrescentou o magistrado no mesmo texto sobre o cofundador da Altice, que acabara de chegar para férias à mansão que construiu na sua terra, Guilhofrei (freguesia de Vieira do Minho): «Armando Pereira, […] embora alertado por um familiar do avistamento de um carro de uma estação televisiva nas imediações da residência de Guilhofrei, não deu relevância, por ser habitual no verão virem ‘cuscar’».

Mas esta aparente tranquilidade não acompanha a realidade. Outra escutas no processo teriam servido de melhor exemplo.

Conforme referido pelo Nascer do SOL há uma semana, a estação de televisão em causa era a TVI/CNN Portugal. Os seus responsáveis garantiram na terça-feira que, ao contrário, do que dizia também este jornal, nenhum jornalista seu contactou Armando Pereira previamente, mas uma fonte conhecedora do processo indica que o empresário, durante as diligências de busca, terá afirmado aos investigadores que, na véspera, fora interpelado pela TVI mas se recusara a prestar declarações.

O que ao certo se apurou para os autos foi que um primo do empresário, na manhã do dia 12 (véspera do desencadeamento da operação), lhe ligara para o avisar que, nas imediações, andavam jornalistas à sua procura. Armando só reparou no telefonema mais tarde e respondeu ao familiar. Trazia os jornalistas na mira. De forma amadora, os jornalistas deixaram rastos. Armando tinha-os na fisgada. Sabia tratar-se de uma equipa da TVI que estivera parada em frente ao portão da mansão (conforme lhe confirmara a dona do café situado do outro lado da via). Adiantou ainda que os membros da equipa haviam colocado, frente ao portão, uma câmara para captar as pessoas que entravam e saíam, mas que isso não seria grave, explicando: «Eles não me conseguiam ver». Este relato é consistente com a indicação de que a estação de televisão de Queluz de Baixo estava a par da violação do segredo de justiça.

Encontro no Ritz

Aliás, a presença da TVI terá sido a razão pela qual o genro de Pereira, Yossi Benchtrit, que trabalha para a filial norte-americana da Altice e que estava com a mulher também a passar férias na mansão de Guilhofrei, abandonou precipitadamente e sozinho a propriedade para vir a reunir-se, já no dia das buscas, com Hernâni Antunes e um dos seus testas-de-ferro, Hakim Boubazine, no Hotel Ritz em Lisboa, fazendo contas ao que estava a acontecer. A fuga de Benchtrit, deixando a mulher para trás, tinha razão de ser, uma vez que o MP viu assim cerceada a intenção de também o constituir arguido, sob a alegação de, em Nova Iorque, onde o casal habita num luxuoso duplex adquirido o ano passado por 70 milhões de dólares, ter participado em ações de cumplicidade com o esquema montado pelo sogro e o empresário bracarense.

Para os investigadores há duas fugas de informação que podiam ter ferido de morte o inquérito. A primeira, em julho do ano passado, teve expressão numa noticia publicada pela revista Sábado que dava conta de que Rosário Teixeira e o coordenador da Inspeção Tributária de Braga, Paulo Silva, investigavam os donos da Altice. Apenas Carlos Alexandre, juiz do inquérito, não constava na notícia. Talvez por, como é público, tratar-se de um homem discreto. A partir dai, como o contabilista de Hernâni contou no interrogatório, de vez em quando tentava recolher informações junto de uma professora universitária. Os investigadores têm pouca esperança na figura feminina mistério mas continuam a dar caça a quem quebrou o segredo de justiça. Uma coisa é clara: a fuga de informação a que os arguidos se referem e que os levou a destruir e esconder documentação nada tem a ver com as restantes.