Poeta com muito mundo

Numa sessão de comemoração dos 25 anos de carreira literária de Vasco Graça Moura, no Porto, Rúben de Carvalho disse que considerava o “excelente poeta, notável tradutor e o homem imensamente culto” como uma “espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hyde da vida portuguesa”. E mais de 25 anos depois é assim que o dirigente…

 

 

“Pura e simplesmente, parecia que a pessoa que detinha aquela cultura vastíssima, afável e aberta, e aquela que assinava as crónicas no DN, algumas mais cavaquistas do que o Cavaco, não eram a mesma”, comenta, acrescentando que muitos outros amigos comuns viam o erudito com a mesma perplexidade.

“Tirando essa obsessão, e alguns pontos de vista, era uma pessoa com quem se passava uma noite de conversa interessantíssima. Uma referência, sem dúvida”, afirma Rúben de Carvalho, que recorda também que nunca as suas inclinações políticas – foi militante do PSD e desfiliou-se logo em 1975 , permanecendo um eterno simpatizante de uma visão do mundo conservadora da direita – interferiram um milímetro na sua actuação como gestor cultural de grande carreira, e presidente da Fundação Centro Cultural de Belém, desde Janeiro de 2012. “Ainda o ano passado, ao telefone, pedi-lhe o empréstimo de uma sala do CCB para o ensaio de um concerto da Festa do Avante”. E ele disse que sim? “Claro, nem nunca me passou pela cabeça que não o fizesse!”, reconhece o dinamizador da grande festa anual do PCP. “Sabia separar muito bem as coisas. O cavaquismo dele ficava-se pelas páginas do DN”.

“Contundente, mas nada sectário”, é como o descreve Inês Pedrosa, a directora da Casa Fernando Pessoa nos últimos seis anos, actualmente demissionária, que o recorda em Novembro do ano passado a acompanhar todo o congresso de Fernando Pessoa que decorreu no Teatro Aberto. “Ele, que dizia sempre que o Pessoa não é grande poeta, esteve lá o tempo todo, já bastante doente, e quando nos cruzávamos brincava: ‘O Pessoa não vale nada em comparação com o Camões”. Esta opinião não o impediu de, como disse em entrevista ao SOL, em 27 de Abril de 2012, ter, enquanto director da Imprensa Nacional Casa da Moeda, feito editar a obra completa de Pessoa e seus heterónimos.”Ele era muito capaz de viver com os seus contrários”, resume Inês Pedrosa, elogiando-lhe uma característica: “Era muito isento. Podia não gostar ideologicamente de uma pessoa, o que não o impedia de apoiar e elogiar o seu trabalho. Isso é mesmo muito invulgar cá”.

Em Janeiro de 2012, quando o antigo eurodeputado assume a presidência do Centro Cultural de Belém – num processo turbulento em que substitui António Mega Ferreira (convidado num dia para continuar no cargo e desconvidado dois dias depois pelo então secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas) levantou-se a lebre de que as inclinações políticas do poeta pesaram demasiado no afastamento de Mega Ferreira, que se tinha pronunciado claramente contra Passos Coelho durante a campanha eleitoral.

O ambiente geral era-lhe, por isso, adverso, e Graça Moura preparava-se para liderar uma das principais instituições culturais do país, em perda de público, graças à austeridade, e com cortes orçamentais brutais. Resolveu acolher sobretudo a prata portuguesa, abriu ainda mais os palcos do CCB aos artistas nacionais, as vanguardas incluídas, e mais do que tudo conquistou a equipa do CCB, habituada a venerar a personalidade expansiva de Mega Ferreira.

António Mega Ferreira, agora a dirigir a Orquestra Metropolitana de Lisboa, refere que o facto de se ver substituído por um amigo não teve “repercussão nenhuma” entre os dois. “Eu próprio o recebi cordialmente e lhe passei a pasta. Ele não teve nenhuma responsabilidade nesse episódio desagradável”. Uma amizade, “não muito próxima nos últimos anos, mas feita de um respeito intelectual mútuo, apesar de termos uma visão do mundo claramente antagónica”. Uma dessas divergências é, exemplifica Mega Ferreira, o Acordo Ortográfico (AO), uma batalha em que Graça Moura se envolveu durante mais de 20 anos, e a que voltava sempre, com fúria. Aliás, numa iniciativa claramente contra-corrente, Vasco Graça Moura entra um dia no CCB e no dia seguinte suspende a aplicação do AO – que considerava “um desastre para a língua portuguesa” – em todos os documentos produzidos pela instituição. Será provavelmente a única casa dependente do Estado a seguir a velha norma do português.

Um homem encantador

Desde há um ano, claramente devastado pelos dois cancros, de que falava abertamente, não deixou de se apresentar todos os dias no CCB, mesmo quando vinha das sessões de quimioterapia, que fazia a pouco mais de 2 km de distância, na Fundação Champalimaud. O estoicismo e a sua postura de gestor disponível para acolher a diversidade – que defendia a urgência de um regresso a uma cultura clássica, mas que acolheu no cartaz do CCB propostas tão radicais como as dos encenadores João Galante e Ana Borralho – derreteu corações. “Um homem encantador e uma cabeça extraordinária”, resume uma das suas colaboradoras, funcionária do CCB há anos.

Num ciclo de pouco mais de dois anos impôs a sua cultura humanista com conferências e cursos de história, de estudos clássicos, de literatura portuguesa. O curso de latim esgotou duas edições, dando razão à ideia, que sempre defendeu, de que não se pode ser criativo se não se conhecer os melhores do passado.

Dalila Rodrigues, administradora do CCB, convidada por ele, salienta que “como presidente teve uma acção decisiva em todas as frentes, mas deve-se especialmente a Vasco Graça Moura o programa na área da literatura e humanidades, o desenvolvimento de parcerias muito importantes com as embaixadas acreditadas em Portugal e com o Museu do Fado e o apoio aos artistas nacionais, fazendo-lhes convites à apresentação de propostas em todas as áreas de programação”.

Maria Helena Borges foi sua adjunta, entre 1996 e 1999, no Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) e recorda a sua competência e frescura como gestor: “Para o Vasco não havia impossíveis. Concretizava as ideias mais extravagantes sabendo seduzir as pessoas para os seus projectos”. Um desses projectos extravagantes foi o de ter pedido a Siza Vieira que fizesse o pavilhão da Gulbenkian para a Feira do Livro de Frankfurt em que Portugal era país convidado. “Achámos que o Siza não iria aceitar fazer um simples pavilhão. Não só aceitou como fez uma peça extraordinária que atraiu ainda mais visitantes”. Maria Helena Borges recorda que quando o escritor e gestor saiu da FCG para aceitar um lugar de eurodeputado, deixou um “serviço antes anquilosado completamente renovado. Era uma pessoa rara, um gestor extraordinário e com uma cabeça de artista. Um dois em um”.

Mas também uma pessoa capaz de gestos de grande valor. Nas vésperas da ida para Frankfurt, Maria Helena Borges apagou sem querer um documento de 300 páginas do computador. Em choque, disse ao então director do serviço o que acontecera e que precisava de ir ao jardim para se recompor. “Fui chorar uns minutos e, quando voltei, em cima da secretária tinha um soneto escrito por ele. Para me lembrar que o meu drama não fazia sentido”. Uma característica que lhe reconhece é a de extrair o melhor das pessoas: “Todos nós passámos a andar com o ego nos píncaros”.

Considerado poeta repentista, era também pouco hesitante a entabular amizades. Katia Guerreiro recorda a surpresa de o então eurodeputado e figura maior da cultura portuguesa ter respondido ao email de uma miúda que dava então os primeiros passos no mundo do fado. A amizade entre os dois começou quando a mãe mostrou à jovem Katia um artigo elogioso sobre a nova voz do fado assinado por Graça Moura. “Fiquei muito sensibilizada, até porque estava numa fase muito precoce da minha carreira e achava que ninguém me conhecia. Consegui o email dele e escrevi a agradecer”.

A partir daí corresponderam-se. Ficaram amigos mesmo antes de se conhecerem pessoalmente: “Trocávamos emails, onde falávamos sobre literatura, sobre música, sobre o estado do país. E mandava-me livros autografados”.

Um último fado

Foi uma amizade que começou pelo fado, género de que Graça Moura era grande apreciador – tendo escrito livros sobre a temática, como Amália: dos Poetas Populares aos Poetas Cultivados. E que acabou com o fado ‘Até ao Fim, Amor’, um poema que na noite da passada segunda-feira Katia Guerreiro cantou, em estreia absoluta, na cerimónia fúnebre na Basílica da Estrela. “Há anos que o Vasco me pedia para cantar um poema dele. Na semana anterior este tinha ficado pronto mas já não fui a tempo de lho mostrar”, lamenta a fadista ainda emocionada, poucas horas depois de cantar o tema que incluirá no disco a editar em Setembro. “Tinha prometido que na condecoração dele [A Grã Cruz da Ordem de Santiago, entregue há três meses] cantaria e não foi possível. Cantei agora nesta última condecoração, que é a subida aos céus”.

A 3 de Janeiro, dia do aniversário, com o agudizar da doença, Vasco Graça Moura tinha sido internado no Hospital da Luz, para lá ficar três semanas. Temia-se a chegada rápida da morte. Mas o presidente do CCB voltaria ao trabalho na fundação em frente aos Jerónimos, onde está o túmulo de Camões, o poeta português que estima entre todos e que por um arraigado dever de pedagogia verteu para uma corajosa versão: Os Lusíadas Para Gente Nova.

No final de Janeiro, a Fundação Gulbenkian dedicou-lhe um colóquio de homenagem comissariado pelo ensaísta e filósofo Eduardo Lourenço. Seria a última em vida, depois de um ano de comemorações em 2013. Em jeito de epitáfio, o comunicado do CCB cita uma declaração de Eduardo Lourenço ao JL:”Os deuses – ou Deus – concederam-lhe a ele, Vasco, a graça de ser poeta, e um grande poeta. Fazendo isso deram-lhe tudo. Nada lhe falta”.

Mas Vasco Graça Moura foi muito além de poeta. O título de figura renascentista cola-se-lhe em quase todos os elogios que lhe fazem. Licenciado em Direito, foi gestor de várias instituições de relevo nacional, foi político, poeta, romancista, tradutor premiado e ensaísta e, como diz Katia Guerreiro, “um amigo que nunca falhava a ninguém”.Vivia entre Almeirim, onde tinha a sua enorme biblioteca, e Lisboa. E deixa quatro filhos de dois casamentos.

Nasceu no Porto em 1942, no seio de uma família de advogados. Foi por isso natural cursar Direito, embora o pai tivesse quebrado a tradição familiar: trabalhava em publicidade. Com a idade de quatro ou cinco anos – como recordou numa entrevista ao SOL – ouvia à mesa do jantar o pai ler Camilo Castelo Branco ou recitar de cor páginas inteiras de Eça de Queiroz. O gosto pela literatura formou-se cedo e aos 17 anos, de livre vontade, o jovem Vasco lia a poesia de Petrarca.

Poeta e tudo o mais

Em 1975, interrompe a advocacia, que exercia no Porto, para um cargo no IV Governo Provisório: foi secretário de Estado da Segurança Social. Depois, no VI Governo Provisório, seria Secretário de Estado dos Retornados. Em 1978 assumiu a direcção de Programas do Primeiro Canal da RTP. Foi administrador da Imprensa Nacional Casa da Moeda, de 1979 a 1989 . A partir daí o seu currículo como gestor só tem paralelo na intensidade com que abordava a escrita de textos em nome próprio e de traduções de grandes vultos da literatura. É um homem da Renascença que toca vários instrumentos e com uma voracidade como se não precisasse de descanso.

Entre outros cargos, foi Comissário-Geral da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (1989-1995), Comissário para a Exposição Universal de Sevilha de 1992 e director do Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi deputado ao Parlamento Europeu entre 1999 e 2009. Numa certa altura dessa fase, dedicava as noites em Bruxelas a traduzir Petrarca.

Orientou seminários e proferiu um sem-fim de conferências internacionais em instituições de prestígio, entre as quais, o Collège de France. O currículo que o CCB enviou à imprensa conta sete páginas, onde aos cargos se somam a vasta obra literária, as condecorações no estrangeiro e em Portugal – entre as quais a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique – e os muitos prémios literários de que os maiores serão o Prémio Pessoa 1995 (um prémio de carreira que ironicamente carrega o nome do poeta que Graça Moura via como sobreavaliado) e o Premio Nazionale per La Traduzione, atribuído pelo Governo italiano em 2008, à versão portuguesa de A Divina Comédia, de Dante Alighieiri. Com um currículo brilhante de tradutor, verteu para português obras de Rilke, Lorca, Shakespeare, Racine, Petrarca. Mas não se considerava um profissional da tradução: “Sou uma pessoa que gosta de ler poesia e que gosta de encontrar na sua própria língua um equivalente”. Encarou a tradução das 800 páginas de A Divina Comédia como um desafio simples: “Apostei comigo mesmo que era capaz de traduzir um canto por noite. O que me levava 100 noites. Mas como ao fim-de-semana podia traduzir três ou quatro, acabei por levar uns três meses e depois outros tantos a rever”, contou ao SOL.

Ao longo da sua vida literária de mais de 50 anos – a primeira obra Modo Mudando foi editada em 1963 – escreveu torrencialmente, publicando em várias editoras quase em simultâneo. Mas a sua paixão pela arte extravasava a literatura. Dalila Rodrigues salienta que os unia “a História da Arte e a paixão pela grande pintura antiga. Tínhamos uma espécie de desafio entre os dois que era uma discussão recorrente sobre a autoria dos Painéis de São Vicente”. Salientando que se conheceram enquanto ele era presidente da Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos Científicos e ela era comissária científica da exposição dedicada ao pintor Grão Vasco, e que depois trabalhariam juntos também na Fundação Gulbenkian, recorda que o desaparecido presidente do CCB “sempre trabalhou com total entrega e sempre consequente com os seus princípios. Tenho por ele uma enorme amizade e eterna gratidão”.

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