Prado. O último desejo da infanta ‘feia e portuguesa’

O mais rico museu ibérico nasceu há precisamente 200 anos, da vontade de uma infanta portuguesa que morreu aos 21 anos.

Quando o projeto de Norman Foster para a remodelação do Salão dos Reinos estiver concluído, o Museu do Prado, em Madrid, ganhará capacidade para ter em exposição permanente cerca de duas mil obras de arte. Parece um valor modesto quando comparado com as 35 mil obras de arte do Louvre. Mas os números enganam. Como diz o cineasta espanhol Carlos Saura, «este_museu não é o mais extenso, mas é o mais intenso». O Prado tem para oferecer aos seus visitantes uma extraordinária viagem pela história da pintura europeia, de Fra Angelico a Francisco de Goya. «O Prado é como uma cidade, cujas ruas percorrem o tempo, atravessam os séculos e o mundo», disse o crítico de arte e romancista John Berger. É um local privilegiado para apreciar a obra de Hieronymus Bosch (artista do qual possui a maior coleção mundial), Ribera, Rubens e, evidentemente, o grande Velázquez.

Este templo das belas-artes, situado a cerca de 600 quilómetros das duas maiores cidades portuguesas, inaugurou há precisamente 200 anos, a 19 de novembro de 1819. Por mão, curiosamente, de uma portuguesa.

Foi a infanta Isabel de Bragança, mulher do Rei Fernando VII_de Espanha e filha de D. João VI, nascida no palácio de Queluz, a principal impulsionadora do projeto. Na origem do museu do Prado (cujo nome se deve ao facto de ter sido construído nos terrenos do ‘prado dos frades Jerónimos’), esteve um edifício destinado a albergar o_Real Gabinete de Historia Natural, um dos equipamentos daquela que formaria a Colina das Ciências. O arquiteto Juan de Villanueva começaria em 1785 a desenhar o projeto – um dos expoentes do neoclássico espanhol –, que seria no ano seguinte aprovado pelo Rei Carlos III. O_edifício estava quase terminado em finais do século, e assim continuava quando em 1807 as tropas de Napoleão invadiram a Península Ibérica. O_conflito adiaria a sua conclusão, com a construção a ser usada para fins militares, como quartel de um regimento de Cavalaria. Depois, com os cofres exauridos e a Espanha devastada pelas atrocidades cometidas pelo exército francês (tão bem retratados por Goya na série Desastres da Guerra), definitivamente expulso em 1814, o Real Gabinete teria de esperar.

 

Morte prematura e perdas napoleónicas

E é aqui que entra em cena Isabel de Bragança, a infanta a quem os espanhóis chamaram «feia, pobre e portuguesa». Isabel foi rainha de Espanha durante apenas dois anos – tempo, ainda assim, suficiente para deixar um legado de que ainda hoje os espanhóis se orgulham. Em 1818, ano da sua morte (partiria deste mundo com uns meros 21 anos completos), teve a ideia de recuperar o edifício nunca concluído do Real Gabinete para ali mostrar ao público as coleções de arte reais, um pouco à semelhança do que se fizera em França em 1793, quando o Musée Central des Arts, mais tarde rebatizado Museu do Louvre, abriu portas. O casal real contribuiria a título pessoal de forma generosa, quer com quantias em dinheiro, quer com obras de arte transferidas das suas residências.

O núcleo inicial da instituição madrilena, a cuja inauguração a infanta portuguesa já não pôde assistir, comportava cerca de 300 pinturas pertencentes à família real. Apesar das terríveis perdas sofridas durante o período napoleónico (1807-1814), que incluíram obras-primas como O Aguadeiro de Sevilha ou o famosíssimo retrato O Casal Arnolfini, de Jan van Eyck (atualmente na National Gallery em Londres), o património da monarquia estava repleto de tesouros acumulados ao longo de séculos. Os Reis Católicos já colecionavam pintura religiosa, mas o grande impulso seria dado no século XVI por Carlos V, o imperador Habsburgo e mecenas de Ticiano, e pelo seu filho Filipe II (I de Portugal). No século seguinte, as coleções seriam enriquecidas com as obras geniais de Diego Velázquez, pintor oficial de Filipe IV; Carlos IV manteve a tradição e em 1800 contratou para Primeiro Pintor de Câmara o irreverente Francisco de Goya e Lucientes.

 

A transferência para Genebra

O acervo do Museu Real de Pinturas – como se chamava originalmente – nunca deixou de ser aumentado pelos sucessivos monarcas, juntando-se-lhe também as coleções de outros museus que com ele se fundiram. Do estatuto de Museu Real passou a Museu Nacional em 1872 e só em 1920 adquiriria a atual designação.

Talvez com o trauma da ocupação napoleónica ainda bem presente, na década de 30 do século XX a ameaça que a guerra civil entre franquistas e republicanos representava para esta coleção excecional foi levada muito a sério. «Quando se desencadeia, em Espanha, o levantamento de Franco contra a República, no mês de Julho de 1936, a preocupação da comunidade internacional dos conservadores de museu, historiadores da arte e mecenas centrar-se-á no esforço por ajudar a salvaguardar as obras e tesouros do Museu do Prado», escreveu Hector Feliciano em O Museu Desaparecido (ed. D. Quixote). «Era necessário proteger o edifício, uma vez que, com as diferentes batalhas, o cerco e o constante bombardeamento de Madrid, as obras de Velázquez, el Greco, Murillo, Van Eyck, Rogier van der Weyden e Bosch corriam riscos de destruição irreparável». Para proteger estes tesouros, é posto em marcha um plano para deslocar o museu para território neutro. Os objetos mais valiosos foram levados para Valência, primeiro, e Catalunha, depois, tendo como destino final a Suíça. «Em janeiro de 1939, com as maiores precauções, vinte camiões carregados de obras de arte quase inteiramente provenientes do Museu do Prado farão mais de 71 viagens entre os depósitos da Catalunha e a fronteira francesa». Por fim, as obras de arte foram «carregadas em vagões de comboio com destino a Genebra», continua Feliciano. A gigantesca operação, que serviria como ensaio para o que seria feito no Louvre durante a II_Guerra Mundial, tem um caráter pouco duradouro. «Com a vitória nacionalista consumada em Abril de 1939, as coleções do Prado terão de regressar de Genebra a Madrid, onde ficarão nas mãos do governo de Franco».

 

Os cotovelos quase a roçar nas Meninas

Hoje, a obra mais emblemática e acarinhada do Prado é sem dúvida Las Meninas, retrato da infanta Margarida Teresa, das suas aias, e do próprio artista, pintado por Velázquez em 1656. Curiosamente, nem sempre foi assim. No testamento de Fernando VII (o marido da infanta portuguesa), que morreu em 1834, a pintura de Velázquez está avaliada em 400 mil reais, a moeda da época. Era sem dúvida uma grande soma, suficiente, por exemplo, para comprar uma enorme propriedade – mas distante dos 4 milhões que valia uma pintura de Rafael.

Foi junto dela que o fotógrafo alemão Thomas Struth, cujas imagens do interior de museus a abarrotar de visitantes se tornaram mundialmente famosas, fez a sua mais icónica fotografia. «Trabalhei lá durante sete dias, oito horas por dia, e notei como os grupos das escolas se punham muito perto do quadro, quase a tocá-lo com os cotovelos», contou Struth ao Guardian. A sua foto mostra também «dois tipos que parecem muito céticos com o que o guia lhes está a dizer sobre a pintura. Talvez preferissem estar a beber uma cerveja».