Práticas comerciais desleais conquistam espaço na agenda de Bruxelas

O Grupo de Trabalho para os Mercados Agrícolas, constituído no início de 2016, apresentou há dias ao Comissário Europeu da Agricultura e Desenvolvimento Rural, Phil Hogan, um importante relatório sobre a evolução global da cadeia de abastecimento alimentar e, muito em especial, sobre a posição do produtor nessa cadeia.

De acordo com o Comunicado da Comissão Europeia, o relatório, entre outros aspetos, “apela para novas regras a nível da UE que visem cobrir determinadas Práticas Comerciais Desleais (PCD), bem como a aplicação de regimes de execução eficazes nos Estados-Membros, nomeadamente mediante o recurso a um Provedor”, acrescentando que “embora se tenham revelado úteis, as iniciativas voluntárias não têm conseguido induzir uma execução eficaz e independente” e que, como tal, deve “ser adotada [uma] legislação-quadro a nível da União Europeia”.

O Grupo de Trabalho constata que existem significativos desequilíbrios a nível de poder negocial e que esses desequilíbrios podem encorajar práticas comportamentais abusivas. E acrescenta que a grande maioria dos fornecedores indica já haver sido objeto de Práticas Comerciais Desleais, as quais geram ineficiências, aumentam o risco comercial, criam incerteza, sufocam a inovação e tendem a causar subinvestimento na cadeia de abastecimento. E não esquece que a cultura empresarial em cada país introduz, por vezes, especificidades e práticas que podem agravar ainda mais a situação.

Esta é a razão principal para que, em 20 Estados-Membros, várias iniciativas legislativas tenham sido aprovadas com o intuito de combater a Práticas Comerciais Desleais, iniciativas que tiveram um impacto positivo no funcionamento da cadeia de abastecimento. Ao invés, refere o Relatório, nenhuma das abordagens voluntárias ou nacionais existentes, quer sozinhas quer em combinação, conseguiu até agora resolver a questão das PCD.

Os autores do relatório consideram ser difícil elaborar e aprovar uma nova legislação que, de forma instantânea, corrija as Práticas Comerciais Desleais que se observam no mercado e que conquiste um rápido reequilíbrio do poder negocial entre as partes, “mas uma legislação-quadro sensata pode ajudar na causa da melhoria de posição de agricultores e de PME do setor transformador relativamente às PCD, uma promessa que as iniciativas voluntárias [de autorregulação] não foram capazes cumprir”.

Os especialistas do Grupo de Trabalho defendem, assim, a criação de legislação que combata um conjunto de PCD mais comuns ao conjunto dos países que integram a União Europeia, dando a cada Estado-membro a margem de manobra para regulamentar acima e para além daquela lista de Práticas Desleais.

O papel complementar dos chamados Códigos de Boas Práticas é sublinhado no Relatório, mas são recordadas as suas limitações que passam, em especial, pelas questões da confidencialidade ("fator medo") e pelas questões de execução. O relatório afirma mesmo que, por força desse "fator medo", a parte mais fraca é incapaz de fazer uso efetivo dos seus direitos, não estado disposta a apresentar uma queixa formal por receio de arriscar a relação comercial.

E lembra que alguns Estados-Membros adotaram regimes de arbitragem específicos geridos por autoridades independentes, que podem realizar investigações por iniciativa própria que não conduzam à divulgação da identidade de um autor da denúncia, dando como exemplo de Boa Prática o caso do Reino Unido, que criou uma autoridade pública na forma de um Adjudicador do seu ‘Code of Practice’, semelhante a um Provedor de Justiça, e que tem mostrado resultados de atuação muito interessantes.

Essas autoridades, de acordo com o relatório, poderiam também julgar ou mediar disputas baseadas em regras incluídas em códigos voluntários de boas práticas, caso os mecanismos de resolução primária estabelecidos por tais instrumentos não resolvam a disputa, reforçando, acrescenta, a capacidade de sancionar a má conduta – de forma proporcional à gravidade da conduta e compensando os prejuízos gerados – fator fundamental para dissuadir comportamentos não conformes.

Assim e em resumo, em matéria de Práticas Comerciais Desleais, os autores do relatório aconselham a Comissão Europeia a propor a introdução de uma legislação-quadro da UE e de uma base de referência harmonizada de PCD proibidas (e não abrangidas pela autonomia contratual das partes) nos Estados-Membros, a qual deveria, como mínimo, incluir (i) prazos de pagamento superiores a 30 dias; (ii) alterações unilaterais e retroativas de contratos (relativamente a volumes, normas de qualidade, preços); (iii) contribuição para custos promocionais ou de marketing; (iv) exigências sobre produtos desperdiçados ou não vendidos; (v) cancelamentos de última hora de encomendas relativas a produtos perecíveis e (vi) pedidos de pagamentos antecipados para garantir ou manter contratos

A aplicação desta legislação-quadro, acrescentam os autores, deverá permitir ultrapassar o referido ‘fator medo’, pelo que as vítimas de PCD devem ter a possibilidade de apresentar denúncias anónimas e entidades coletivas poder apresentar queixas conjuntas, enquanto os organismos de execução devem ter a capacidade de realizar investigações por iniciativa própria. Esses organismos devem ter a possibilidade de aplicar sanções por incumprimento e atuar de forma dissuasiva.

Quando estamos a semanas de cumprir três anos da publicação do diploma das Práticas Individuais Restritivas do Comércio (PIRC – Dl 166/2013), percebe-se que Portugal adotou, bem e em devido tempo, legislação nacional para combater o fenómeno das Práticas Comerciais Desleais, mas se por um lado é importante reforçar a sua aplicação, dotando as autoridades responsáveis de mais meios técnicos e humanos, por outro, não deixa de ser relevante perceber que Bruxelas, apesar das diferenças de situação entre Estados-Membros, está cada vez mais próxima da criação de legislação-quadro nesta matéria.

Este tema deixou de ser uma preocupação que, aparentemente, apenas afeta alguns operadores económicos em alguns países (especialmente no Sul da Europa) para se tornar numa preocupação generalizada para um cada vez mais alargado conjunto de Governos na UE e, mais ainda, para os operadores económicos desses mesmos países.

E constata-se que, tal como os autores do relatório referem, estas legislações não são uma panaceia, sendo que, não obstante o reforço dos meios de combate às Práticas Comerciais Desleais e de, pelo menos no caso português, um quadro contraordenacional muito mais dissuasor, essas Práticas, apesar de em menor número e realizadas por um conjunto mais limitado de operadores, continuam a ocorrer com demasiada frequência, com demasiados custos, com demasiada penalização para a cadeia de abastecimento, com demasiada impunidade, com demasiado impacto na previsibilidade das relações comerciais entre as partes e, acima de tudo, com demasiada desatenção de quem tem obrigação de cuidar da regulação do mercado.