Pritzker, da cabana em África à habitação social em França

O prémio Pritzker 2021 distinguiu um casal de arquitetos que tem como lema ‘nunca demolir’. A 1.ª obra de Anne Lacaton e Jean-Phillipe Lassal foi uma cabana feita de ramos num país africano onde tiveram de reequacionar o que tinham aprendido sobre arquitetura. Com intervenções subtis, elevam o minimalismo a novo patamar.

Como transformar um mamarracho de betão da década de 1960 num edifício para o século XXI – moderno, elegante, amigo do ambiente e dos moradores? Quando assumiram a empreitada de transfigurar três blocos de habitação social em Bordéus, Anne Lacaton e Jean-Philippe Lassal comprometeram-se a não deitar abaixo o que existia. Por muito desengraçada que seja uma construção, o casal de arquitetos franceses tem o lema de nunca demolir.

Assim, propuseram ‘acoplar’ às fachadas pré-existentes uma espécie de plataformas, quase como uma estrutura de andaimes, que permitiu expandir a área das habitações. A intervenção foi concluída em 2017:_a arquitetura monótona típica da habitação social modernista deu lugar a grandes superfícies envidraçadas de varandas e jardins de inverno que aligeiraram o peso dos grandes blocos maciços. Ao nível do interior, as mudanças não foram menos importantes: os residentes passaram a ter mais luz e mais espaço nas suas casas, para não mencionar a poupança ao fim do mês decorrente do aumento da eficiência energética. E os grandes blocos de betão não precisaram sequer de ser beliscados.

«Uma transformação é uma oportunidade para fazer mais e melhor com o que já existe. A demolição é uma decisão facilitista e de curto prazo», defende Anne Lacaton. «É um desperdício de muitas coisas – um desperdício de energia, um desperdício de materiais, e um desperdício de história. Além disso, tem um impacto social muito negativo. Para nós, é um ato de violência», remata.

Foram soluções subtis, engenhosas e económicas como a destas 530 unidades de habitação social em Bordéus que valeram ao casal de arquitetos a conquista do mais cobiçado prémio de arquitetura, o Pritzker. O_anúncio foi feito esta semana pela Fundação Hyatt. Entram assim para o panteão restrito dos grandes arquitetos modernos, onde figuram nomes como Philip Johnson, I. M. Pei, Oscar Niemeyer, Frank Gehry, Siza Vieira, Tadao Ando e Zaha Hadid.

«As esperanças e sonhos modernistas de melhorar as vidas de muitos ganham um novo vigor através da sua obra, que responde às emergências climáticas e ecológicas do nosso tempo, bem como às urgências sociais, em particular no domínio da habitação urbana», elogiou o júri do prémio no comunicado. «E conseguem isto através dum poderoso sentido do espaço e dos materiais que cria uma arquitetura tão forte nas suas formas como nas suas convicções, tão transparente na sua estética como na sua ética».

Outro dos projetos emblemáticos de Lacaton e Lassal foi, em 2012-14, a renovação do espaço dedicado à criação artística contemporânea no Palais de Tokyo, o famoso centro cultural que alberga o_Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris. Também aí, embora o edifício art déco de 1937 acusasse o desgaste do tempo, optaram por mexer o menos possível para revelar «a estrutura escondida, a modernidade do espaço», que consideravam «majestoso». Em vez do famoso white cube que era a solução habitual para espaços deste tipo, deixaram as paredes por rebocar e todas as possibilidades em aberto. Gastaram apenas 13 milhões de euros na renovação (uma quantia modesta para um dos maiores espaços do seu género em todo o mundo) e iniciaram uma moda do raw.

 

Fazer quase tudo com nada

Ao respeito por estes princípios de economia de meios e de boa gestão dos recursos não será alheio o facto de Anne Lacaton e Jean-Philippe Lassal terem vivido e trabalhado no Níger durante cinco anos no início das suas carreiras, depois de se licenciarem em arquitetura em Bordéus. Ali encontraram pessoas que «faziam quase tudo com nada, à procura de recursos o tempo todo, mas com optimismo, cheios de poesia e de inventividade».

Numa entrevista à revista de arquitetura Oris, Anne Lacaton explicou como a experiência foi uma segunda escola.

 «Quando chegámos a África, a um país muito pobre a Sul do Sahara, não havia arquitetura naquele sentido em que tínhamos aprendido», descreveu a arquiteta. «Havia casas muito simples e básicas com telhados de colmo e paredes de adobe, e isso foi como um terramoto mental porque olhas para uma coisa que é tão diferente. Depois de alguns meses começas a libertar-te de tudo o que aprendeste, começas a observar e a analisar coisas muito pequenas: por exemplo, as lojas são na rua, durante a tarde, quando faz muito calor, o sol está muito alto, fazem uma espécie de telhado com ramos de árvores, põe as roupas por cima e faz uma sombra».

Também eles construíram, em Niamey, a sua própria cabana com ramos de arbustos, uma casa reduzida à essência. Foi o seu primeiro projeto conjunto. Ao fim de dois anos, foi levada pelo vento. Mas algo de importante ficou: fizeram o voto de nunca destruir o que existia. E alteraram por completo a sua perceção do papel do arquiteto. «Temos a certeza de que o trabalho do arquiteto não é mostrar que sabe fazer edifícios muito bonitos, mas ser inteligente com a pergunta que é colocada. É muitas vezes complexo mas trabalha-se no problema até encontrar uma solução muito simples».

 

Um novo patamar no minimalismo

A primeira casa que assinaram em França, a Casa Latapie (1993) – uma pequena moradia em Floirac, nos arredores de Bordéus, para os pais de Anne – inspirava-se na arquitetura das estufas. Mas não é de todo surpreender que faça lembrar, pela simplicidade e pelos materiais usados, os musseques africanos. As chapas onduladas amovíveis podiam abrir-se ou fechar-se consoante as estações, as horas do dia ou as necessidades de luz e de arejamento.

O chileno Alejandro Aravena, presidente do júri do Pritzker, chamou-lhes «radicais na sua delicadeza e ousados na sua subtileza». Não será exagero dizer que, nos seus projetos, Lacaton e Lassal transportam os princípios do minimalismo para outro patamar. Se houve casos, como nos edifícios de habitação social, em que conseguiram mudar por completo o rosto de uma construção através de intervenções cirúrgicas, noutros levaram ainda mais longe os seus princípios, tornando o arquiteto ‘invisível’.

O melhor exemplo disso é a sua proposta para a reformulação da Praça Léon Aucoc, em Bordéus. Corria o ano de 1996. O executivo camarário queria mostrar obra feita e fez-lhes a encomenda. Antes de começarem a desenhar planos e a imaginar alterações, os arquitetos levaram a cabo um inquérito junto da população. Como era a praça utilizada e vivida pelas pessoas? O que gostariam que ela tivesse? Falaram com os velhos que jogavam à petanca e com as crianças que jogavam à bola e andavam de bicicleta.

No final, dirigiram-se ao cliente – o presidente da Câmara – e entregaram-lhe uma pasta com papéis. Lá dentro, não estava um projeto de arquitetura, mas um relatório. Que dizia que não havia problema nenhum com a praça, não era necessário construir nada, alterar nada. As árvores faziam sombra no sítio certo, os bancos não precisavam de ser mudados. «Esta praça é bonita porque é autêntica», diziam os arquitetos. «As pessoas parecem sentir-se bem nela. A praça é frágil. É um sítio delicado em que existe um equilíbrio». Mesmo que isso os fizesse perder uma oportunidade de trabalho, Anne Lacaton e Jean-Philippe Lassal preferiam não mexer em nada para não pôr esse equilíbrio em causa. Havia apenas uma coisa que o presidente da Câmara podia fazer para torná-la melhor: aumentar a frequência da limpeza.