Putin, a dramatização e as guerras das atuais gerações

A decadência relativa desta Rússia resulta, em grande medida, das ‘manias de grandeza’ de quem quer usufruir de um estatuto que já não é o seu…

por Francisco Gonçalves

O discurso da última semana do Presidente russo nada trouxe de novo. É, não mais do que a afirmação de um homem desesperado por manter o seu poder político e recuperar o poder do seu Estado no sistema internacional.

A Rússia é, com Putin, uma potência revisionista. É-o, em termos militares, mas não o é em nenhuma outra dimensão do poder – e isso deixa os russos nacionalistas em estado de choque: a irrelevância é o pior sentimento, em política.

A Rússia, que tem o maior arsenal nuclear do mundo, tem um exército no qual os soldados têm que pagar a sua arma. Tem um programa espacial, mas tem um PIB próximo do da Espanha ou da Itália, que não podem ter pretensão de ser potências globais.

Os rendimentos da alta do petróleo e das matérias primas, das últimas décadas, foram investidos nesta Rússia de hoje, e não na modernização da economia ou do estado social do país. A responsabilidade pelas opções políticas russas não é do ‘Ocidente’, é de quem tem governado o país.

A decadência relativa desta Rússia resulta, em grande medida, das ‘manias de grandeza’ de quem quer usufruir de um estatuto que já não é o seu. A Rússia não se quis normalizar e, com isso, poder ser uma potência do século XXI. Escolheu viver do passado e no passado, seja na forma como se relaciona com os outros (que deseja tratar como vassalos), seja na forma como trata os seus nacionais (a quem recusa tratar como cidadãos).

Esta década será, como seria sempre, uma das mais desafiadoras desde o pós-II Guerra Mundial. A ascensão da China a potência global coloca desafios à regulação do sistema internacional. Todas as alterações sistémicas trazem dificuldades, pois são tradicionalmente momentos de conflito. No caso da China as dificuldades são acrescidas, pois é a primeira potência global não ocidental da Era moderna, o que provoca tensão no Ocidente, que olha o mundo apenas com as suas próprias lentes.

Todavia, apesar da dramatização de Putin, que diz não haver razão para utilizar armas nucleares, mas deixa sempre no ar o seu imenso arsenal, como que ameaçando sem ameaçar, há um ponto no qual tem razão: quando diz que há dois ocidentes. Na verdade, há dois ‘Ocidentes’ claros, mas haverá muitos outros. Detenhamo-nos apenas nos dois claros.

O ‘Ocidente’, aqui entendido como os Estados demoliberais que pretendem ver o sistema internacional organizado com regras mínimas, vive numa crise de valores políticos. Não entre ‘conservadores cristãos’ e ‘cosmopolitas globalistas’, como convém a Putin referir para dividir o adversário, mas entre aqueles que mantêm respeito pelos valores da democracia liberal e os que defendem democracias iliberais.

Se, no Ocidente, apenas houver duas barricadas, são estas que estão em causa: os que defendem democracias plenas, e os que defendem as democracias de papel. Isto é, democracias liberais respeitadoras das instituições, do cidadão e dos seus direitos; e, democracias que elegem os seus líderes, mas nas quais o controle dos eleitos está limitado, os cidadãos têm a sua liberdade (mais) condicionada, bem como as instituições servem não o cidadão, mas o ‘chefe’.

EUA, Reino Unido (Brexit), França, Itália e, agora, o Brasil. Em todos estes caos, no lado da barricada das democracias iliberais estão os aliados de Putin.

A guerra física, real, com batalhas e mortos, está a acontecer na Ucrânia. A outra guerra, civilizacional, relativa à moral e à decência no futuro das nossas sociedades, está a acontecer sem batalhas, mas com vítimas: todos nós.

A má notícia é que estamos a perder!