Queimada pelos incêndios, Serra do Caldeirão troca cortiça pela ‘rota do carvão’

Isabel Pires, 67 anos, olha em lágrimas para a terra que deu sustento à sua família durante gerações. A serra do Caldeirão está hoje transformada na «rota do carvão», com hectares de encosta queimada, onde não se vislumbra qualquer fonte de rendimento.

em 2004, um outro incêndio consumiu parte da produção de montado
de sobro e cerca de 400 colmeias da habitante da cova da muda, são brás de
alportel. a tragédia repetiu-se há uma semana mas, desta vez, com mais
dramatismo. foi perdido todo o trabalho de uma vida.

«o que não ardeu em 2004 ardeu agora. acresce ainda o prejuízo do
investimento feito nestes oito anos. todo o montado ficou destruído e mais de
150 colmeias. o que a serra produziu em décadas, as chamas destruíram em poucos
minutos. foi o fim», vaticina isabel pires, enquanto aponta para as abelhas que
sobreviveram ao «inferno» e pousam no mel que ainda escorre pelo solo seco e
queimado.

indignada, a moradora acredita que a desgraça, que consumiu 35% do
total do concelho de são brás de alportel, podia ter sido evitada, caso as
entidades responsáveis tivessem actuado no período que mediou os dois grandes
incêndios.

«durante estes oito anos devia ter-se feito muita coisa. esta é
uma zona crítica, mas os nossos governantes nunca ligaram à serra nem aos seus
moradores. fizeram-se miradouros, criou-se uma rota da cortiça e agora faz-se a
rota do carvão. depois de estar tudo queimado é que se fazem os corta fogos»,
lamenta a habitante, antes de nos deixar na estrada que separa são brás de
alportel e tavira.

ao longo da encosta o cenário é desolador. o que antes era uma
paisagem verde, é agora um deserto negro sem vida e em silêncio. o cheiro a
queimado e os focos de fumo a sair das entranhas de algumas árvores
transportam-nos para o incêndio que atingiu o coração da serra do caldeirão, onde
estiveram mais de mil bombeiros.

este é o algarve profundo, bem diferente das imagens turísticas
das praias que aparecem na televisão. ao fim de alguns quilómetros, a única
pessoa que avistamos foi um ciclista e algumas povoações «perdidas» no meio da
serra.

chegados à aldeia de cabeça do velho, uma das zonas mais
fustigadas, está maria ramos, 55 anos, que reside com os pais. além do montado
de sobro, o fogo consumiu tudo o que estava no interior dos nove anexos
espalhados pela serra.

«cerca de 300 litros de azeite, 50 caixas de batatas e de
alfarrobeiras, centenas de litros de vinho, quatro motociclos e as alfaias
agrícolas. morreram sete coelhos e dois patos. isto é uma tristeza enorme. a
serra transformou-se num deserto de cinzas. era visitada por muitas pessoas e
turistas, mas agora quem é que vem para cá?», questiona, maria ramos, ao pé do
que um dia foi um motociclo.

ao seu lado está guiomar rodrigues. enquanto conta como combateu o
incêndio sozinha a partir do telhado da sua habitação, a sexagenária aponta
para uma galinha morta na encosta e leva-nos até duas casas queimadas que
serviam de arrumações.

de um bidão corre ainda vinho tinto. na parede negra permanece um
quadro de nossa senhora de fátima. num dos lados está o ferro e as molas
contorcidos de duas camas. a ração para os animais resume-se a cinzas.

subindo a serra do caldeirão pelo lado de tavira, o negro continua
a ser a cor predominante. manuel dias, 71 anos, reside na zona de castelão. as
duas arrecadações onde guardava as ferramentas para trabalhar a terra arderam.
o burro – sem nome – acabou por morrer quando tentava fugir das chamas.

a alegria de manuel dias, ao acordar todos os dias e de ver a
serra verde e pujante, deu agora lugar à tristeza, à angústia e à desilusão de
ver «morrer» o que tinha tanta vida.

lusa/sol