Razão e manipulação

O truque é um clássico da manipulação política: anuncia-se a hecatombe e depois recua-se até à semi-catástrofe, substituindo assim o pânico e a revolta pela submissão resignada.

nesta técnica de dominação popular, o governo tem demonstrado mestria.

não é muito difícil, porque esta escola ideológica vem de longe: a ditadura de salazar funcionava assim, tal como o colonialismo português e até a inquisição; todos ganharam fama de ser mais ‘brandos’ do que os seus congéneres espanhóis, pela prática contínua desta arte de vergar o oprimido convencendo-o de que a dor infligida é em prol da sua salvação e dói tanto a quem a causa como a quem a sofre.

o escravo que em vez de ser torturado no tronco recebia ‘apenas’ umas dezenas de chicotadas, a inquisição que dava aos judeus a ‘oportunidade’ de se tornarem cristãos, a pide que, a não ser em casos excepcionais, ‘apenas’ utilizava a tortura do sono… constituem uma lenda de brandura que teve efeitos reais, instituindo hábitos de servilismo e temor agradecido que se prolongaram até hoje.

o povo português acostumou-se a ajudar respeitosamente e a confiar em quem o maltrata, desconfiando por sistema de quem procure dar-lhe ânimo e fazê-lo progredir. «se a esmola é muita, o pobre desconfia», diz o ditado – e, como se verificou desde a entrada dos fundos da comunidade europeia, no governo de cavaco silva, até à eclosão da crise financeira internacional, no último governo de josé sócrates, o pobre aproveita: é fartar, vilanagem.

foi assim com a profusão de ‘cursos’ e empreendimentos falsos criados com os fundos europeus. foi assim que se criaram esquemas de acumulação entre pensões de desemprego e reinserção social; e esquemas de carreiras financeiras escandalosas tecidas entre a política e a administração (ou assessoria) de empresas públicas ou privadas.

«damos uma mão, tomam-nos o braço» – a verdade concreta e quotidiana deste epigrama popular é um apelo ao oportunismo e à desistência de qualquer ideal.

um país criado na filosofia do mal menor e numa cultura de opacidade da coisa pública (através da multiplicação da burocracia e da educação católica, segundo a qual é pecado falar de dinheiro) não desenvolve capacidades solidárias nem de mudança.

«estamos todos no mesmo barco», repetem-nos agora os governantes. «todos temos que fazer a nossa parte», acrescentam.

entretanto, alegram o povo com a notícia da subida do escalão dos que perdem os subsídios de férias e de natal. e acalmam os palradores intelectuais anunciando – oh, misericórdia! – que o iva do livro se manterá nos 6% e o dos espectáculos subirá apenas para o dobro, em vez de exceder o triplo.

acontece, porém, que há muitos que já fazem ‘a sua parte’ há décadas – e são esses os que continuam a sofrer os maiores sacrifícios.

repetem-nos que não há meio de cortar na despesa sem cortar nos salários e nas prestações sociais.

muito bem: porque não começam então por estabelecer um tecto para as reformas da administração pública? um tecto de, por exemplo, dois mil e quinhentos euros.

quem quisesse ter uma reforma mais dourada faria um plano de poupança reforma adicional e privado.

josé sócrates teve a coragem de cortar as reformas vitalícias dos deputados ao fim de 12 anos de funções – e cortou também a pensão vitalícia do primeiro-ministro, a começar pela sua. mas que um juiz do tribunal constitucional receba mais de 7.200 euros de pensão de reforma ao cabo de dez anos de trabalho parece-me incompreensível – ética e financeiramente.

haverá certamente muitos outros exemplos semelhantes em cargos da administração pública – ora o neo-liberalismo bem administrado começa em casa: a divisa «menos estado, melhor estado» deveria começar por aplicar-se aos altos cargos da república. por uma elementar questão de respeito pelos sacrificados. e também porque estas são prestações sociais fáceis de, como agora se diz, «racionalizar».

inespedrosa.sol@gmail.com