Reprodução parcial da participação à Polícia

Precisamente no último dia de permanência do SOL na Baixa de Lisboa, na Rua de S. Nicolau – pois no dia seguinte iniciava-se a mudança para Linda-a-Pastora -, saiu-me a fava.

Quando cheguei ao lugar onde tinha deixado o automóvel, no parque de estacionamento da Baixa-Chiado, junto ao antigo Tribunal da Boa-Hora, deparei-me com uma insólita situação: um carro estava com a traseira encostada à porta do meu, onde era visível um risco profundo. O meu filho mais novo, que me acompanhava, ficou tão estupefacto quanto eu.

Na verdade, quando um carro bate noutro que está estacionado, duas situações se podem dar: ou deixa um papel a dizer que bateu, com o respectivo contacto, ou foge. Já me vi envolvido em ambas as situações. O que nunca me acontecera fora o carro responsável pelo sinistro ficar ali encostado, expondo o seu 'crime'! Tratar-se-ia de desleixo – ou o condutor estaria tão distraído que nem se apercebera da situação?

Dirigi-me à portaria do parque para reportar o insólito caso. Atendeu-me uma funcionária muito jovem, que me disse já ter conhecimento do sucedido. E estendeu-me um pequeno papel escrito à mão onde se lia: “Mercedes Class A 47-23-SF bate e arranhou o BMW 320d 78-ML-89. Hora 14:35”.

– Está tudo registado em vídeo – acrescentou a rapariga.

Fiquei tranquilo. Estava registado em vídeo, não havia dúvidas.

– E agora o que devo fazer? – perguntei.

– O melhor é participar à Polícia. E eles podem vir cá e visionar o vídeo.

Agradeci à moça e regressei ao jornal, pois o outro carro, com o pára-choques enfiado na porta do meu, impedia-me a saída.

Chegado ao edifício do SOL, situado a uns 30 metros do parque de estacionamento, pedi à Carolina Silva, minha assistente, para chamar a Polícia.

Ela contactou a esquadra da Baixa, a pessoa que a atendeu foi muito atenciosa – e disse que os colegas viriam logo que tivessem disponibilidade. Tive, porém, de esperar umas três longas horas. Por volta das 22h00 informaram-nos que o carro patrulha estava a chegar. Fui para a entrada do parque e pouco depois apareceu um carro azul e branco da PSP. Conduzi os agentes ao lugar do meu carro, ao lado do qual já não estava nenhum. O outro, entretanto, saíra.

Um dos guardas, o mais jovem, tinha quase dois metros de altura e um físico imponente, levando-me a pensar ser um desperdício andar naquele serviço quase burocrático. O outro era mais velho e mais baixo. Ao fim de uns minutos, em que lhes expliquei o sucedido, disseram-me que eu teria de “participar o sinistro” na Divisão de Trânsito da PSP, que ficava “para os lados do Estádio de Alvalade”.

Como isto se passava numa quinta-feira à noite, e na sexta não trabalhávamos, na segunda-feira dirigi-me diligentemente ao tal sítio, depois de me esclarecer no Google sobre o caminho a seguir. Fui atendido por dois guardas prestáveis, que tomaram conta da ocorrência. Preenchi vários documentos, mostrei-lhes o papel que a moça do parque me tinha entregue, eles fizeram uma fotocópia e juntaram-na à participação.

Foram, entretanto, ver a quem pertencia o veículo responsável pelo acidente, concluindo que se tratava de uma loja do Chiado. Possivelmente a proprietária estava atrasada para abrir o estabelecimento e estacionou à pressa, nem reparando que tinha batido noutro carro – pensei eu.

Saí da Divisão de Trânsito com a sensação do dever cumprido e não pensei mais no assunto.

Eis senão quando, passadas umas semanas, recebo um telefonema de um perito que queria falar comigo. Confesso que atendi o homem com alguma irritação. Para mim, o caso estava mais do que esclarecido. Eu fora a vítima, tinha o carro amolgado há várias semanas, já perdera imenso tempo com uma série de diligências e ainda por cima tinha de dar explicações. Mas lá me enchi de paciência e falei com o fulano.

O indivíduo começou a levantar várias dúvidas, a insistir neste e naquele ponto – e a páginas tantas não me contive e disse-lhe:

– Esta conversa é surreal. Acidente mais claro do que este é impossível! Bateram no meu carro quando estava parado num parque de estacionamento, eu vi o carro encostado ao meu, participei à Polícia, há um vídeo que registou o sucedido… Se neste acidente há dúvidas, então nenhum se resolve!

O homem respondeu que não era bem assim, que as coisas não eram tão simples como podiam parecer, que o processo tinha de seguir para o DCIAP. Achei tudo aquilo absurdo – mas continuei a achar que o bom senso prevaleceria e tudo acabaria em bem.

Estava completamente enganado.

Passadas mais umas semanas, já perto do fim do ano, o dito homem voltou a telefonar e queria ter uma conversa comigo. Era demais! Mas fiz apelo ao meu espírito natalício e dispus-me a recebê-lo.

Ele lá apareceu em Linda-a-Pastora, parecia saído de um livro de Eça – com um farto bigode e um ar oitocentista – mas mostrou-se afável. E eu também. Descrevi-lhe uma vez mais o que se passara, ele explicou que as companhias de seguros já não têm peritos e contratam gabinetes que fazem o serviço externo, como se fossem escritórios de advogados. Preencheu uns papéis com as minhas declarações, eu assinei, ele assinou, e no fim perguntou-me se podia ver o carro.

Respondi naturalmente que sim e acompanhei-o à garagem. Ele observou os estragos com atenção (basicamente um vinco profundo na porta), perguntou-me qual era a posição relativa dos carros na altura do sinistro, verificou outra vez a amolgadela e sentenciou:

– De facto, vê-se que o vinco vai-se aprofundando no sentido da marcha-atrás do outro veículo… Não há dúvida…

Descansei.

Mas a história ainda não tinha chegado ao fim. Na semana passada, recebi o seguinte email:

“No que se refere ao processo em assunto, vimos por este meio informar que concluímos as diligências que estavam em falta para apurar claramente a responsabilidade do sinistro em assunto.

De facto, de acordo com o relatório que se elaborou, verificou-se que efectivamente não existe prova inequívoca da responsabilidade da nossa segurada, no que se refere aos danos do V/ cliente.

Com efeito, não só os danos não têm qualquer enquadramento entre si, como se concluiu que os danos apresentados na viatura sinistrada apresentam uma forma cuja origem seria uma parte contundente de um veículo no sentido de trás para a frente.

Já no que concerne aos danos do N/ veículo seguro, de acordo com o croqui elaborado pelo V/ cliente, estes localizar-se-iam no canto de trás direito, no entanto, não existe qualquer dano nem o N/ veículo apresenta superfície contundente que pudesse originar os danos sofridos.

Já relativamente às testemunhas, depois de indagar junto de seguranças do parque, nenhum tinha conhecimento da ocorrência e, admitindo que algum colega possa ter dado conta do sinistro, acham altamente improvável o mesmo ter conseguido tomar conta da matrícula visto o visionamento das imagens não poder ser repetido.

Face ao exposto, claramente não ficou provada a responsabilidade da nossa segurada relativamente ao sinistro em questão.

Com efeito, mantemos a nossa posição de recusar a responsabilidade, tendo por base o disposto no art. 487º do Código Civil: 'É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa'.”

Julgo que este seria o relatório do perito. O email terminava dizendo que, querendo, eu podia adicionar ao processo novos dados.

Fiquei revoltado. Numa linguagem macarrónica, o funcionário não só me desmentia (levantando dúvidas sobre a minha conversa com a portaria do parque e até sobre o conteúdo do vídeo) como me chamava estúpido (pois a minha descrição do sinistro não batia certo com os danos!).

Respondi de imediato, reafirmando naturalmente tudo o que dissera e acrescentando um dado: tenho um nome a defender. Sou director de jornais há mais de 30 anos e não posso admitir que a minha palavra seja tão grosseiramente posta em causa. Não é o valor dos danos que me move – pois nem são avultados. A minha luta é outra: é em defesa da minha palavra e de princípios.

Não vou deixar o caso por aqui. Para os leitores incautos, a companhia de seguros que assim agiu chama-se Zurich. Cuidado! Com companhias de seguros assim, ninguém está seguro.