Respeito

O primeiro ensinamento dos capitães de Abril continua por absorver. Três sílabas: respeito. A consideração pela vida, pela carreira e pela individualidade alheia.

Aos 20 anos, Salgueiro Maia sabia instintivamente o que isso era e dispôs-se a entregar a vida por essa palavra.

Com serenidade e determinação, conseguiu que a rendição da ditadura ocorresse sem sangue. Morreu ainda jovem, aos 47 anos, depois de ter recusado cargos e mordomias – e sem ter tido resposta ao pedido que fez em 1988, ao então primeiro-ministro Cavaco Silva, de uma pensão por “serviços relevantes prestados à Pátria”.

Três anos volvidos, o mesmo primeiro-ministro aprovou a atribuição de pensões a dois ex-inspectores da PIDE, um dos quais participara no tiroteio sobre a multidão que se encontrava junto da sede daquela polícia política, a 25 de Abril de 1974.

Os puros incomodam. As suas lições são tidas como improcedentes, porque, em geral, só nos livros de História encontram o conforto da homenagem. Em vida são tomados como ingénuos, o que hoje é sinónimo de patetice. Vicejam os gangsters vestidos de senhoritos, que ameaçam, coagem, chantageiam e aterrorizam em torno de chávenas de chá, como se esses actos fizessem parte da natureza da vida.

A cada 25 de Abril relembro as palavras que um dos puros de Abril, Hugo dos Santos, tantas vezes me disse ao longo da minha juventude: “Não te deixes vergar pelas tentativas de prepotência. Nunca deixes de honrar a justiça e a liberdade”.

Sabia do que falava, porque antes e depois desse dia “inicial, inteiro e puro”, como escreveu Sophia, muitos tentaram comprar-lhe a alma e anestesiá-lo com a droga do poder. Alguns homens de Abril sucumbiram a esta vertigem – mas não Hugo dos Santos, não Salgueiro Maia, não muitos outros.

Libertaram o país e entregaram-no aos portugueses. Isto já terá sido escrito milhares de vezes, mas é preciso voltar ainda a escrevê-lo. Assistimos, impávidos, ao regresso do tom e do modo da PIDE, no dia-a-dia das empresas e das relações humanas. O desrespeito é lei, no mundo neoliberal do salve-se quem puder, feito de armadilhas, intimações e tortura psicológica.

Há dias, uma economista que concorria a um lugar numa instituição prestigiada deu por si a despejar a mala de mão, pensos higiénicos incluídos, diante do potencial empregador: dizia-lhe ele que, pela arrumação da mala de uma mulher, se percebia a sua capacidade laboral. Não contente, fê-la ainda mostrar-lhe a bagageira do seu automóvel. Só nesta segunda vistoria a candidata acordou e disse: “Não, obrigada”.

Entretanto, cada vez mais cartas de rescisão laboral são assinadas sob coacção ou ameaça directa, invocando ‘ilícitos’ de que os visados não foram notificados e que supostamente implicariam indemnizações tão vultosas que os levam a assinar hipnoticamente, sem recordarem que têm direito a conhecer as acusações de que são alvo, e a defenderem-se delas.

Quando muito, ocorrer-lhes-á durante um segundo recorrer à Justiça. Mas um mui curto segundo – pois logo lhes ocorre a morosidade e o preço da dita Justiça, e baixam os braços.

O Processo de Kafka parece uma fábula infantil a comparar com a realidade em curso. A instalação do medo, brilhantemente descrita por Rui Zink, vive o seu esplendor. A tortura em curso mata a essência da liberdade de Abril: o respeito.