Romantismo. Atentado ou nova vida?

A reconfiguração do antigo Museu Romântico do Porto tem gerado polémica. Uns consideram o novo projeto um atentado à memória. Outros acreditam que o espaço estava estagnado no tempo e ganhou uma nova vida.

Desde que reabriu portas a 28 de agosto, com a exposição Herbário de Júlio Dinis – numa homenagem ao escritor portuense nascido há 150 anos, figura central desta edição da Feira do Livro – o atual Museu da Cidade do Porto tem estado no centro da polémica. Muitos condenam as alterações feitas e a transformação da casa-museu num «museu de exposições contemporâneas». 

Rebaptizado Extensão do Romantismo do Museu da Cidade, o antigo Museu Romântico, na Quinta da Macieirinha, seria possivelmente o mais visitado dos museus municipais do Porto, principalmente graças às enchentes de turmas do ensino secundário de todo o país que lá iam ‘beber’ o conhecimento para o colocar em prática nos seus testes de História e Português. As salas do edifício oitocentista outrora pertencente à família Pinto Basto recriavam a atmosfera doméstica de uma casa da alta burguesia portuense no período romântico. 

As âncoras da petição

Mas essa é só uma das principais razões para a onda de descontentamento criado, após a «total reconfiguração» do espaço e do seu conceito – com o esvaziamento de quase todas as peças que integravam a coleção exposta. E a autarquia foi a primeira a anunciá-lo com entusiasmo na página de Facebook da Feira do Livro do Porto, no sábado passado, 28 de agosto: «Se conhecia o anterior Museu Romântico da Macieirinha, prometemos que este novo espaço nada tem a ver com o local que outrora visitou».

Aquilo que os responsáveis não esperavam é que essa alteração acabasse por fazer nascer uma petição pela reposição do espólio do Museu Romântico do Porto, que conta atualmente com mais de 2000 signatários e que considera a recente reconfiguração do espaço «uma violação patrimonial», acusando a autarquia de, «com orgulho», «desfazer» o antigo museu. «Uma casa burguesa musealizada e com abertura ao público que mostrava como se vivia no Porto romântico oitocentista, deu agora lugar a mais um espaço de contemporaneidade desintegrada como tantos outros e completamente dissociado da vivência original que (também e principalmente) constituía a sua riqueza patrimonial», lê-se no documento que questiona o paradeiro do espólio retirado e exige que o museu «volte a retratar fisicamente e fielmente a realidade doméstica burguesa oitocentista».

Os peticionários dizem ainda ter sido com «espanto» que assistiram ao «orgulho com que a Câmara Municipal do Porto anunciou que desfez o Museu Romântico da Macieirinha»: «Como se explica aos decisores autárquicos portuenses que a casa é um todo e que o seu desmembramento intencional constitui clara violação patrimonial?», acusa o texto.

A arquiteta Ana Motta Veiga, vice-presidente da direção nacional do Chega e responsável pelo lançamento da petição, garante ao Nascer do Sol que «o Porto perdeu um dos museus mais queridos dos portuenses, dos portugueses e dos turistas que visitavam a cidade». Para a arquiteta, as opções culturais na cidade «avançam num conceito mono-cultural com o predomínio da arte contemporânea e isso não é o que os portuenses querem». « O Porto tem muitas outras histórias para contar», frisou, defendendo que a cidade invicta já tem um «excelente museu contemporâneo que é Serralves» e já possui outros edifícios históricos reabilitados capazes de receber «projetos expositivos contemporâneos ou temáticos temporários», como a Casa da Bonjóia, que pertence à autarquia. 

«O Museu Romântico foi desfeito e espoliado de todo o seu recheio decorativo que, de acordo com a autarquia, seguiu para restauro, para reservas ou foi entregue aos donos sem especificar se estes alguma vez os requisitaram e se esta entrega pode ou não constituir perigo à sua conservação», declarou. Para Ana Motta Veiga os gastos com as obras de reabilitação desta «extensão» contemporânea correspondem a um projeto museológico «diferente do que seria necessário para a reabilitação do Museu Romântico» e que era «o que se esperava que estivessem a fazer nos últimos meses», acreditou. Para a arquiteta, e para mais 2000 pessoas que assinaram a petição, «não basta agora repor o mobiliário retirado, é necessário refazer também todo o ambiente decorativo e arquitetónico oitocentista».

Também no Facebook as vozes discordantes se fazem ouvir: «Suspendo o meu silêncio para manifestar a minha estupefação perante esta total imbecilidade provinciana», atirou Rodrigo de Sá-Nogueira, professor associado da Faculdade de Psicologia da UL, que já viveu na Invicta. «O Museu Romântico era um símbolo do que o Porto ainda é. Radicalismos provincianos acabaram com ele. No século xıx também se destruiu património em nome do ‘progresso’; agora é do ‘modernismo’. Quem conhece o Porto sabe que é uma cidade burguesa, conservadora […]. Uma perda enorme!», conclui. Num tom mais jocoso, houve quem comparasse o novo projeto museológico às intervenções do programa Querido, mudei a casa!.

Cortar ‘radicalmente’

Nuno Faria, diretor artístico do Museu da Cidade e curador da exposição que inaugurou a nova Extensão do Romantismo, defende a opção de cortar «radicalmente» com a proposta museológica que se mantinha mais ou menos inalterada desde a criação do Museu Romântico em 1972, e que evocava a passagem do Rei Carlos Alberto da Sardenha, que viveu algum tempo na Quinta da Macieirinha. 

«Não era uma casa-museu, ninguém viveu ali daquela maneira! Era uma construção ficcional, a conceção do Estado Novo do que era uma casa burguesa do século XIX», argumentou Faria em declarações ao Público. «Esteve 50 anos assim e as coisas evoluem e passam por transformações», sublinhou, acrescentando que o projeto atual pretende designadamente dar visibilidade aos escritores, artistas visuais e músicos românticos, sobretudo portuenses.

No que toca aos comentários na publicação de Facebook e a petição em questão, o responsável do Museu da Cidade considera-as «ofensivas e provocatórias». A publicação do anúncio da reconfiguração do espaço, originou mais de 400 comentários, quase todos de desagrado. Não vêm apenas de internautas mais ou menos anónimos. Entre os signatários da petição ‘Pela reposição da decoração interior oitocentista do Museu Romântico da Quinta da Macieirinha no Porto’ encontram-se figuras como o ex-ministro da Cultura Luís Filipe Castro Mendes, a antiga diretora-geral de Serralves, Odete Patrício, ou o historiador Gaspar Martins Pereira.

Em declarações à Lusa, Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto e responsável pelo pelouro da Cultura (que ‘herdou’ com a morte inesperada de Paulo Cunha e Silva, em 2015), defendeu também que «nada foi destruído», rejeitando todas as críticas sobre a ausência de preocupações patrimoniais. O governante lembrou que quando o executivo tomou posse, o Museu Romântico estava em «péssimo estado» tendo sido alvo de uma reabilitação que, sublinhou, «ficará para sempre».

Segundo Moreira, já nessa altura (2018), houve críticas às alterações preconizadas em termos de museografia que «tinham sido explicadas aquando da apresentação do projeto do Museu da Cidade», recordou. «Chamámos a atenção para as alterações que iríamos fazer, na forma como iríamos expor a museografia quer no Museu do Romântico, quer nos outros espaços que temos, e que ninguém nos acuse de não termos preocupações patrimoniais, veja-se o caso do Reservatório em que nós colocámos peças que nunca tinham sido exibidas», disse. O autarca explicou ainda que a Extensão do Romantismo pretende ser uma interpretação «daquilo que é o romantismo na cidade do Porto, não apenas com a passagem do rei pela cidade».

Assumindo a opção, o autarca acrescentava: «Aquilo que fizemos foi alterar a museografia daquele museu fazendo agora uma exposição temporária que daqui a seis meses rodará, e naturalmente que voltaremos a expor lá de forma organizada alguma das coisas que já lá estiveram».

De acordo com Moreira, todo o espólio do museu foi então recolhido para ser restaurado, classificado e para ser, novamente, apresentado na própria Extensão do Romantismo, quer noutros espaços do Museu da Cidade, nomeadamente na Casa Marta Ortigão Sampaio, Casa Guerra Junqueiro e Ateliê António Carneiro (atualmente em fase de arranque da intervenção).

«Preservar a memória das coisas, dos objetos, dos hábitos, das tradições, não passa necessariamente por encapsulá-las, preservá-los em formol, congelá-las num tempo já passado, já sem vida, já sem corpos, sem respiração», argumentou Nuno Faria numa entrevista publicada no site da autarquia. O curador acredita que a última remodelação teria tornado o museu «um lugar que exercia verdadeiro distanciamento social», já que os alunos das escolas eram confrontados com «uma certa forma de vida […] da alta burguesia» cuja inacessibilidade era vincada pelo facto de o acesso às salas estar vedado e só as poderem ver de fora.

Agora com uma «nova vida», o curador diz que o museu «trabalhará em largo espetro sobre o Romantismo, ou os romantismos, no plural, quer artísticos, quer literários, quer musicais» e a Extensão do Romantismo será «ainda mais do que um espaço expositivo, um espaço performativo», com «uma constante programação musical».
Uma linha que preocupa Rui Lage, membro do conselho municipal de cultura e deputado municipal pelo Partido Socialista. Lage acredita que o problema está, precisamente, no facto da Câmara não gostar de coleções e espólios:

«Esta Câmara acha, no fundo, que as coleções dos museus do Porto são desinteressantes. Portanto, querem reescrever a memória desses equipamentos e transformá-los em salas expositivas», declara, por telefone, ao Nascer do Sol. Para o deputado, por mais que esta seja uma estratégia legítima, com isto «os atuais governantes municipais pretendem programar a memória ao invés de a respeitar».

Um conceito equívoco?

Rui Lage acredita que há duas componentes que convém assinalar: a primeira prende-se com «o pano de fundo», que diz ser «o de uma verdadeira obsessão desta Câmara com a programação cultural e com a curadoria». No seu entender, a Câmara Municipal «confunde de forma persistente uma política cultural com programação cultural». «Isso significa que é uma Câmara que trabalha mais a curto prazo, para aquilo que lhe permite brilhar no curto prazo e menos sobre aquilo que permanece», lamenta. 

A outra componente está relacionada com o facto «da contemporaneidade ser um conceito muito equívoco». Para o membro do conselho municipal da cultura, a contemporaneidade «é um tempo sem espessura» e «uma política cultural não pode ser apenas uma sequência de eventos, tem de ser algo muito mais trabalhado no tempo presente com coisas que nem sempre são visíveis».

O deputado questiona ainda qual será o destino das outras casas-museu da cidade: «Este não é o primeiro caso… Vejamos o que aconteceu à Biblioteca Popular Pedro Ivo que foi recuperada por esta Câmara… De biblioteca só lhe resta o nome, não me consta que lá tenha um único livro», aponta. «Foi transformada ‘num vértice de programação’, o que é absolutamente lamentável». 

Outro dos signatários da petição, o historiador e professor Gaspar Martins Pereira, resgata a intervenção realizada há três anos: «O Museu Romântico do Porto tinha sido intervencionado recentemente com dinheiros públicos, abrindo em 2018. Passado tão pouco tempo vamos alterar tudo? Tirar tudo do seu interior?», interroga ao telefone com o Nascer do Sol. Para o historiador, o que aconteceu foi que «acabámos de descontextualizar aquilo que é uma casa-museu que deve preservar o espírito de uma época, do lugar, de uma casa, dos objetos, das pessoas que por lá passaram», sublinhando a fixação do Rei Carlos Alberto neste espaço depois das revoluções falhadas em Itália. 

Por mais que admita que o programa que existia poderia ser melhorado, o professor contesta o radicalismo da solução: «As coisas parecem mudar da noite para o dia só porque passa pela cabeça de alguém fazê-lo, e isso incomoda-me, porque estamos a falar de estruturas da cidade». Admite entender que se pode abordar o romantismo de muitas formas e que um museu não pode estagnar no tempo, mas não compreendendo como «se pode fazer tábua rasa da sua memória».

O historiador relembra ainda que quando Rui Moreira anunciou a requalificação concluída em 2018 «a intenção era manter o espírito do Museu Romântico». O que considera não ter sido respeitado.

A busca por um equilíbrio 

Ana Motta Veiga afirma que o autarca tem «demonstrado dificuldade em entender que o Museu Romântico tinha um sentido lato, que era um todo que não apenas as paredes». Para a arquiteta, Rui Moreira «menorizou» todas as outras artes românticas subsidiárias da arquitetura, como as artes decorativas, mobiliário, têxteis, iluminação, e tudo o que comportava o recheio da casa oitocentista.

«Há desde logo uma atitude de prepotência, arrogância e até de paternalismo», acrescenta Rui Lage. «Quiseram convencer-nos de que se tratou de uma mudança e no fundo insinuam que as pessoas que se indignaram com este caso são uma espécie de ‘retrógrados’, ‘resistentes à mudança’. Isto é uma forma de desvalorizar a opinião dos portugueses!», contesta. O que lhe custa a aceitar, diz-nos, é que não haja um meio-termo entre aquilo que existia antes no Museu Romântico – a recriação do ambiente de época – e uma sala de exposições temporárias, completamente esvaziada do espólio. «Um equilíbrio. Há muitos museus que o fazem», aponta. 

O deputado municipal não esconde que haja motivações políticas envolvidas: «O Porto merece um pelouro da cultura com um vereador a tempo inteiro. O Presidente da Câmara só pode disponibilizar uma fração do seu tempo à política cultural, como é compreensível. Acredito que esse facto fragiliza e transfere o ónus da execução da política cultural da Câmara, para a empresa municipal. E as pessoas que lá estão não têm legitimidade política», acusa. Para Rui Lage, a Câmara «tem de ter a noção que o facto do Presidente Rui Moreira ser detentor de um mandato para governar o Porto durante quatro anos, não significa que detenha a propriedade do património do Porto».

Instalado na Quinta da Macieirinha, a antiga casa de campo abriu como núcleo museológico em 1972, centrando a sua narrativa no Rei do Piemonte e da Sardenha, Carlos Alberto, que passou ali exilado os seus últimos dias.