Quando Saramago morreu escrevi um artigo chamado Retrato Sem Retoques, onde registei, com verdade, as minhas impressões e memórias sobre ele. Como o título indica, não fiz um retrato cor-de-rosa, contrariando a tendência do momento em que todos – incluindo os que em vida o detestavam – lhe glorificavam as qualidades, chorando lágrimas de crocodilo pelo seu desaparecimento.
Não pertenço a esta estirpe. Como não segui a política, onde é preciso dizer o que convém, conservo a liberdade de dizer o que penso.
Dito isto, dou hoje a minha opinião sobre Sá Carneiro, numa altura em que – comemorando-se o 30.º aniversário da sua morte – poucos querem destoar do coro de elogios.
Tinha 32 anos quando Sá Carneiro morreu, pelo que já acompanhei como adulto a sua carreira política (iniciada em 1969). E penso que ele foi um dos responsáveis pelo fracasso da tentativa marcelista de passar da ditadura à democracia sem revolução.
Explico porquê.
Ao convidar Sá Carneiro, em conjunto com outros liberais – José Pedro Pinto Leite, Miller Guerra, Balsemão, Mota Amaral, Pinto Machado, etc. –, para integrarem como independentes as listas da União Nacional, Marcello Caetano tinha um objectivo reservado: criar uma espécie de ‘terceira força’, situada entre a Oposição e os guardiões da memória de Salazar, na qual pudesse apoiar-se.
Essa ‘terceira força’ dar-lhe-ia a possibilidade de fazer frente aos ‘ultras’ de direita – permitindo um conjunto de aberturas políticas que, a prazo, conduziriam à democracia, a exemplo do que sucedeu em Espanha.
Ora, ao demitir-se da Assembleia (arrastando a demissão dos colegas), Sá Carneiro matou esta tentativa, tirando o tapete a Marcello e entregando-o às ‘feras’ do salazarismo.
Logo nesta altura Sá Carneiro mostrou os seus principais traços de personalidade: corajoso, capaz de rupturas, mas caprichoso e irascível. Possuído de ambições próprias e tendo pouca disponibilidade para colaborar em projectos alheios.
Por isso, depois do 25 de Abril fundou naturalmente uma força política. Mário Soares ainda o convidou para se inscrever no PS, mas percebeu que ele queria criar o seu próprio partido. E criou-o.
No I Governo Provisório, Sá Carneiro voltou a mostrar uma certa tendência para o conflito e uma aversão aos compromissos. Esteve no centro da crise que levaria à demissão de Palma Carlos. Mais tarde não se vergou ao rumo que o seu partido estava a levar e demitiu-se. Esta época coincidiu com a sua doença e com a ida para Londres. Mas logo que voltou a Portugal retomou a liderança do PSD – e, depois de uma cisão que lhe valeria a fuga de mais de metade dos deputados, caminharia em direcção ao poder.
Nessa caminhada teve, a meu ver, o seu grande golpe de asa: defender a ‘bipolarização política’, ou seja, a separação nítida das águas entre a direita e a esquerda. As democracias que funcionam vivem, de facto, de uma alternância entre um partido mais à esquerda e outro mais à direita. É assim em Espanha (PSOE-PP), em França (PSF-gaullistas), em Inglaterra (Labour-tories), na América (democratas-republicanos), etc.
Veio entretanto a saber-se que, antes de defender a bipolarização, Sá Carneiro propusera a Mário Soares um acordo partidário – o que lança legítimas dúvidas sobre a convicção com que defendeu essa clarificação política.
Depois de subir ao poder – e para o consolidar – Sá Carneiro escolheu um adversário: Ramalho Eanes. E atacou-o de forma violenta, criando no país uma indesejável instabilidade.
Eanes era o símbolo da ordem, o homem que tinha promovido o regresso dos militares aos quartéis, o militar que tinha reposto o país nos carris da democracia. Assim, atacá-lo da forma como Sá Carneiro o fez não foi bonito, e acusá-lo de estar conluiado com os comunistas não foi sério. Pois não fora Eanes que, com riscos pessoais, liderara a resposta a uma tentativa de tomada de poder pela esquerda em 25 de Novembro de 1975?
Pensasse-se o que se pensasse de Eanes, os democratas tinham para com ele uma dívida de gratidão – e a campanha hostil de Sá Carneiro soou a capricho, a birra, ao desejo autocrático de controlar o poder sozinho. Não era por acaso que Sá Carneiro queria «uma maioria, um Governo, um Presidente».
Curvam-se hoje as pessoas perante o seu romance com Snu Abecassis. Que teve, de facto, um lado bonito, como todas as paixões: o ir atrás do coração, desprezando as convenções, desafiando o status quo, assumindo o amor. Foi a reedição nos tempos modernos da história de Pedro e Inês. E esse lado romântico da relação entre o intrépido político e a plácida dinamarquesa foi justamente realçado.
Mas essa relação teve outra face – como as moedas. Sá Carneiro, para ir atrás da sua felicidade, não hesitou em abandonar a casa, entregando à sua infelicidade a mulher e os cinco filhos. Isso ninguém ousou referir. Falou-se da coragem de Sá Carneiro – mas ignorou-se solidão da mulher e dos filhos.
Mais uma vez Sá Carneiro revelava o seu lado egoísta. A tendência para só pensar nele. A sua capacidade para fazer rupturas, não olhando muito aos meios e às feridas que isso poderia provocar nos outros.
E depois vem o apoio a Soares Carneiro. Um apagado general que ninguém conhecia e que ele queria colocar na Presidência da República, pensando talvez torná-lo um joguete das suas ambições.
Freitas do Amaral contou-me um dia como tudo se passou: houve uma reunião a três para tratar da candidatura a Belém, onde estavam Sá Carneiro, Amaro da Costa e o próprio Freitas. Sá Carneiro explicou que não podia ser candidato presidencial em virtude da sua situação matrimonial, e sugeriu que o candidato fosse o próprio Freitas – o que este recusou, dada a sua idade (tinha 39 anos) e o facto de ser o líder de um partido mais pequeno. Então Amaro da Costa disse que conhecia um general capaz de fazer bem o lugar. E assim surgiu Soares Carneiro no palco da política.
Quando Freitas me contou esta história, há bastantes anos, perguntei-lhe: «Por que não conta isso publicamente?». Respondeu-me: «Porque só três pessoas estavam nessa reunião e duas já estão mortas. Ninguém poderia confirmar as minhas palavras».
Este modo apressado como se arranjou o candidato presidencial da AD não deteve Sá Carneiro – porque pouco lhe importava o nome do candidato. O seu único objectivo era derrotar pessoalmente Eanes. Vencê-lo. Humilhá-lo. Por isso, Sá Carneiro envolveu-se nesse combate de uma forma suicida – que havia de acabar na tragédia que se conhece.
Quer criar-se agora uma nova Comissão Parlamentar para investigar o desastre de Camarate. É um absurdo. O desastre está estudado e mais do que estudado. Não é possível apurar mais nada. As conclusões a que a comissão chegar serão sobretudo ditadas politicamente: os saudosos de Sá Carneiro continuarão a jurar que houve atentado, os outros continuarão a pensar que se tratou de acidente.
E por que razão todos os partidos admitem hoje essa Comissão? Porque ela será mais uma arena de combate político, interessando desde logo ao PS: enquanto se discute Camarate não estará a discutir-se a crise, o défice, as contradições dos ministros, etc. Tudo o que seja dispersar as atenções será bom para os socialistas. Serão momentos de alívio para o Governo.
Além disso, este endeusamento de Sá Carneiro também interessa hoje ao PS e à esquerda em geral. É que os saudosos de Sá Carneiro, lançando ao vento a ideia «Que falta faz hoje Sá Carneiro!», estão a fazer uma crítica implícita aos actuais dirigentes. Ao compararem o PSD de então com o PSD de hoje, e preferindo o outro, os sociais-democratas saudosos estão a dizer que os actuais dirigentes e o próprio líder são bem mais fracos.
Mais: as ‘saudades de Sá Carneiro’ acabam por menorizar os líderes que vieram depois dele – Cavaco, Marcelo, Durão, Marques Mendes, etc. –, que não estariam à altura do antecessor.
Ora isto é muito discutível. É verdade que Sá Carneiro tinha essa capacidade de explosão e de ruptura, tinha uma indiscutível coragem, tinha carisma e despertava paixões arrebatadas. Mas era emocionalmente volúvel, instável e caprichoso, não olhando a meios para atingir os seus fins.
Seria sempre um bom agitador, um condottiero. Mas não viveu o tempo suficiente para se saber se seria um grande homem de Estado. Pessoalmente, penso que não.