Sapatos-barbatana

Na China, a beleza e distinção das mulheres media-se em boa parte pelo tamanho dos pés. Os pés pequenos eram um sinal de classe e um importante atributo. Assim, desde que nasciam, as meninas tinham de dormir calçadas com uns sapatinhos cujo número crescia muito lentamente, a um ritmo sempre inferior ao que a natureza…

As mulheres chinesas chegavam pois a adultas com uns pés minúsculos, manifestamente desproporcionados em relação ao tamanho do corpo, exigindo prodígios de equilíbrio para se equilibrarem em cima deles. Daí, também, aqueles passinhos curtos e titubeantes com que se deslocavam.

No Ocidente nunca houve essa moda cruel. O que não significa que exista uma relação perfeita entre os pés e os sapatos. Como todos sabemos, a forma dos pés – que são estreitos atrás e de lado e alargam na zona dos dedos – não tem nada a ver com a forma dos sapatos, que afunilam à frente.

Esse é um mistério que nunca foi devidamente analisado. A que se deve essa tão flagrante falta de relação entre o desenho do sapato e a forma do pé? A critérios puramente estéticos? Aliás, foi por via dessa ‘incoerência’ que surgiram no mercado os sapatos ditos ‘ergonómicos’, onde essa relação é bastante mais respeitada.

É preciso dizer, porém, que o desenho do calçado nunca obedeceu a grande lógica. Lembro-me de umas botas de homem tipo vaqueiro muito bicudas, que se dizia a brincar serem para matar baratas ao canto da sala.

E, com os sapatos de senhora, nem se fala. Nunca chegando aos extremos tenebrosos da China, também há formas e feitios para todos os gostos. Uns são demasiado estreitos à frente, apertando os dedos a ponto de os pés só lá caberem com os dedos encavalitados uns nos outros. E depois há os saltos altíssimos e finíssimos, que fazem as raparigas parecer ridículas até aprenderem a andar convenientemente em cima deles.

Recordo, também, umas solas grossíssimas, que tinham de ser ocas para não se tornarem demasiado pesadas, e que davam aos pés um volume enorme – fazendo das mulheres que as usavam umas autênticas patas-chocas. Pareciam arrastar toneladas e tinham de andar com cuidados extremos para não caírem.

Este ano usam-se umas sandálias que também têm solas muito grossas, para tornar as mulheres mais altas, mas não se comparam com essas sapatorras de há uns anos atrás. Estas sandálias até são elegantes, pois têm salto e essa sola grossa só existe na parte da frente.

A propósito de saltos, diga-se de passagem que os saltos altos, com todos os males que possam provocar à coluna, tornam as mulheres muito mais elegantes. Aumentam o comprimento das pernas (o que é importante nas mulheres portuguesas, que têm muitas vezes a perna curta) e contribuem para fazer as pernas mais bonitas.

A oferta de modelos de sapatos para senhora é, notoriamente, muitíssimo mais vasta do que a respectiva oferta para homem. Os homens têm uma gama de escolha muito curta, além de poderem andar praticamente com os mesmos sapatos de Verão e de Inverno (os célebres mocassins ficam bem em qualquer estação) sem ninguém estranhar.

As mulheres, pelo contrário, nem a brincar poderiam pensar em usar no Verão o calçado de Inverno. Os modelos são diferentes, as cores são diferentes, os materiais em geral também (este ano usam-se muito as ditas sandálias de lona com a sola alta de que falei atrás).

Mas precisamente por não haver grandes variações no calçado masculino, fiquei banzado há uns tempos quando, num qualquer lugar banal, vi um homem com uns sapatos longuíssimos, que pareciam ter o dobro do comprimento dos sapatos normais. A princípio, estranhei: ‘Será que este tipo tens uns pés anormalmente grandes e precisa mesmo de um número tão alto?’. Depois percebi que não. Percebi que era moda.

Até porque os sapatos tinham outra característica insólita: eram de verniz. Ora, em princípio, os sapatos de verniz só se usavam com smoking. Ou se viam nos pés dos cantores de cabaret. Mas ali não: era um homem normal, numa situação normal, calçando aqueles sapatos enormes de verniz luzidio.

Depois de constatar que eram moda, duvidei que a moda pudesse pegar, de tão extravagante que era. Mas enganei-me. Daí para cá, em situações diversas, em lugares diversos, em pessoas insuspeitas, tenho encontrado esse tipo de sapatos. Que são caricatos, pois o pé fica – repito – com cerca do dobro do tamanho em relação a um sapato normal. Parecem umas barbatanas. Ou uns sapatos de palhaço rico.

Foi com a maior estranheza, aliás, que vi um respeitável ex-árbitro de futebol, que creio ser militar – Pedro Henriques –, a comentar na TVI os lances polémicos do jogo com uns sapatos desse tipo nos pés. Estranhei ver uma pessoa que me parecia discreta e normal aderir àquela insólita moda.

Acho que não podemos ficar completamente indiferentes à moda, sob o risco de parecermos saídos de outra época. Mas é preciso também fazer-lhe alguma resistência, para não nos tornarmos escravos dela. E para não parecermos demasiado dependentes da imagem.

Há um saudável equilíbrio entre conteúdo e imagem que é preciso saber preservar.

Mas mesmo quem segue sofregamente a moda tem de ter noção do que lhe fica bem e do que lhe assenta mal. Do que o valoriza e do que o torna ridículo. Ora esses sapatos-barbatana de verniz tornam definitivamente ridículo quem os usa. E além disso são irracionais, anacrónicos. Neles não existe qualquer relação entre a forma e o uso. São puros adereços, que deixaram de ter que ver com a função para que foram criados.

jas@sol.pt