Thor um deus que não escapou à morte

Perdido na gesta das divindades nórdicas, Thor tem sido ressuscitado pelos criadores de super-heróis que salvam o mundo a toda a hora. Mas ele foi muito mais humano do que isso. Teve mulher e amante e filhos e irmãos até chegar o dia do crepúsculo dos deuses…

Os tempos que correm devolvem-nos a mitologia nórdica através de filmes e séries em série, desculpem a aliteração. Já ninguém quer saber de Zeus ou Júpiter, de Marte, o deus da guerra, da beleza intocável de Atena ou do arco infalível de Diana. Viria a propósito dizer que um gigantesco martelo caiu do céu para esmagar o panteão heleno-romano deixando-nos à mercê de deuses um tudo nada mais terrenos, ou mais práticos, se é o caso. Thor, protetor da Humanidade, senhor dos raios e dos trovões, amansador de tempestades, vende-se em miniaturas de plástico com a facilidade com que saíam nos gelados as figurinhas do Carrossel Mágico. A Escandinávia não passou a exportar apenas policiais em cenários brancos de neve e lagos gelados, com teimosos detetives modernos que se juntam a hackers para resolver crimes intrincados. Lançou também sobre nós seres que emergem do seu período pagão à mistura com a influência da imaginação germânica na tentativa de explicação do mundo.

Da literatura medieval, ou dos contos da oralidade, ergue-se o martelo como símbolo máximo do poder. Se Zeus empunhava um molho de raios acima da cabeça, o poder de Thor é o Mjölnir, ao mesmo tempo arma devastadora e instrumento divino fazedor de milagres. Mas que homem é este cujas efígies se encontram nas prateleiras de lojas nepalesas à mistura com andorinhas de louça, elétricos de lata, matrículas de automóvel orgulhosamente portuguesas e camisolas de contrafação de Cristiano Ronaldo? Uma figura proeminente que já era descrita pelos germânicos ao tempo da ocupação romana; um símbolo da expansão bárbara para Oeste da Europa; um ser teimoso e obstinado que sobreviveu à cristianização dos povos escandinavos.

Há um elemento preponderante na sua resiliência: o Velho Norse. Também lhe chamam Velho Nórdico. Um período de desenvolvimento dos dialectos germânicos do Norte antes da independência das línguas da Escandinávia que se implantou em três ramos diversos. Cronologicamente, bate certo com o período viquingue, desde o século VII ao século XV. Mas, entretanto, um acervo legislativo que levou o nome de Leis do Ganso Cinzento surgiu no século XII e definiu que noruegueses, suecos, islandeses e dinamarqueses falassem e escrevessem numa língua única: dansk tunga. Língua dinamarquesa em tradução literal. Algo que se tornou impossível. E acabou por desaguar no sueco, norueguês, dinamarquês e feroês, línguas irmãs, e no mais distante islandês, que se manteve mais fiel ao original.

Aqui chegados, após a explicação à margem que serviu, sobretudo, para se perceber a forma como Thor surge figurativamente em todos os atuais países frutos deste ramo de linguagem, cabe dizer que lhe atribuíram quinze nomes diversos. A saber: Ásabragr (Rei Senhor), Asa-Thor (de áss, Deus), Atli (Terrível), Björn (Urso), Eindridi (O que Reina Sozinho), Ennilangr (O que Vê Longe), Hardhughard (O Espírito Forte), Hardveur (O Grande Arqueiro), Hlorrithi (O Cavaleiro do Trovão), Oku-Thor (Thor O Condutor), Rym (Barulho), Sönnungr (O Verdadeiro), Vethorm (O Protector do Santuário), Veod ou Veur (palavras variantes, significando Consagrado) e Vingthor (O Thor da Guerra). As traduções, confesso, foram agora bem menos literais. Mas são reveladoras da personalidade com que revestiram a personagem. E não apenas da importância que lhe atribuíram mas também do medo que provocava aos que o desafiavam.

A mulher e a amante

A vida pessoal de Thor passa pelo casamento com uma loira espampanante – não habitasse ele os recantos mais setentrionais do continente – chamada Sif. Sif surge descrita no Edda, uma coleção de poemas anónimos datada do século XIII e escrita no tal Velho Nórdico que já ficou para trás. Também surge noutra obra do mesmo nome, esta em prosa, mas da autoria de Snorri Sturluson, um escritor e político islandês nascido em 1179, em Hvammur í Dölum, e desaparecido em 1241, porta-voz do Althing, o Parlamento da Islândia, figura interessantíssima da sua época que chegou a ser convidado pessoalmente pelo rei da Noruega de então a passar uma temporada na sua corte. O rei, Hákon Hákonarson, era um fedelho adolescente mas fez questão de aprender uma ou duas coisas com ele.

Voltemos a Sif. Etimologicamente virá da expressão sifjar, que os estudiosos ligam aos verbos casar, ligar, aproximar, e que terá hoje a sua continuidade no inglês sib (afinidade) e no alemão Sippe (família). Portanto, era Sif, a Mulher. Ou a Terra. Thor não poderia ter escolhido melhor. Mas não era homem de uma mulher só pelo que teve, também, uma amante. Digo que não era homem de uma mulher só, mas se calhar digo mal. Pela razão de que a amante, Járnsaxa, tinha pouco de feminino: era um jöttun, uma entidade não humana, aparentada com duendes e anões, um ser ambíguo que, pelos vistos tinha longo cabelos ruivos mas também uma barba considerável. Não disse, ainda, que a mitologia nórdica tem figurantes um tudo nada macabros, mas todos já terão compreendido isso. Ao contrário dos gregos, que fizeram os deuses à sua imagem, os nórdicos vão buscar muita da sua imagética à natureza. Não admira que Járnsaxa tivesse, por isso, um ar malvado e sobrolhos fartos, muito distante do ideal de beleza de Sif, ideal esse que montou o cavalo dos séculos e veio por aí fora a galope até hoje.

Com Sif, Thor teve uma filha, Thrud, uma bela rapariga que surge, mais tarde, e noutro contexto, como uma valquíria, essas figuras etéreas que decidiam sobre a vida e a morte dos contendores nas batalhas. Metade dos que morriam iam parar a um lugar chamado Fólkvangr, que não era assim tão agradável quanto isso, e a outra metade era encaminhada para Valhalla, esse sítio maravilhoso onde habitava o deus Odin, por acaso pai de Thor. 

Odin, por seu lado, foi um pai abundante. Deu a Thor um nunca mais acabar de irmãos, mas não nos adiantemos. Járnsaxa podia ser fisicamente um estupor mas teve a arte de parir Móôi e Magni, ou seja, a Ira e o Poder, voltando à estrada das traduções. Juntamente com a meia-irmã Thrud (Força), assumiram três características principais do pai. A descendência não se ficou por aqui já que Thor assumiu, como padrasto, a responsabilidade por um filho de mulher desconhecida: Ullr (Glória) que teve uma certa importância no início desta saga mas acabou por ir caindo sem parar no poço do olvido.

Sem deixarmos a família do homem do martelo, acrescente-se que do seu ror de manos, todos brotados da fecundidade de Odin, o mais importante foi Baldr, também chamado de Baldur, cuja mãe tinha o nome de Frigg. Tudo deuses, não se esqueçam. Frigg está ligada ao casamento, à profecia, à clarividência e  à maternidade. Já Baldr não deixou de ser modernamente aproveitado, tal como o pai, para assumir o papel de herói da Marvel. Ou seja, também está na moda. Quem o vê nota que é bem mais violento e agressivo do que o irmão, se isso é possível e, pelos visto, é. Nem que seja no mundo encantado dos desenhos animados.

A criadagem

A um figurão como Thor não podiam faltar criados prontos a satisfazerem todos os seus caprichos. Pjálfi e Röskva são os principais. Dois irmãos de sexos diferentes, com Pjálfi a ter muitos mais problemas para resolver do que a mana, já que surge em diversos poemas perseguido por alcateias de mulheres-lobo. Nem todos podem ser divinos no mundo da imaginação nórdica, pelo que tanto Pjálfi como Röskva são diversas vezes confrontados com esse facto e com a carga de trabalhos que lhes é associada. Certa noite, ao vê-los apertadinhos de fome, Thor foi suficientemente magnânimo para sacrificar os dois bodes que puxavam a carroça em que se deslocava nas suas viagens frequentes, Tanngrisnir e Tanngnjóstr. O apetite de Pjálfi era de tal forma pantagruélico que chupou a carne dos bichos até ao tutano, não deixando nem uma réstia de febra. Claro que estas situações estavam sempre controladas por quem tinha a vantagem de ser deus. E assim, ao raiar da manhã, querendo pôr-se a caminho sabe-se lá de onde, Thor tratou de fazer ressuscitar a parelha de cornudos e foi à sua vida. Azar de Pjálfi que devorara, na véspera, uma perna de bode infetada com raiva. A espumar pela boca, suplicou a Thor que o salvasse e este, ouvindo-o à distância a que se encontrava, declarou-o são e salvo, mas obrigado a servi-lo para todo o sempre, que é um tempo um bocado difícil de calcular.

O crepúsculo dos deuses

A Prosa de Edda (Snorra Edda no original islandês), o épico escrito por Snorri Sturluson por volta de 1220, é um livro que vale a pena ser lido, se o encontrarem algures. Dei de caras com ele, devidamente traduzido para inglês, no aeroporto de Oslo, já lá vão uns anos valentes, e nada melhor para quem gosta de aventuras com seres decididamente pouco humanos. Percebemos rapidamente porque é que foram todos parar a filmes. É, diz quem sabe, a mais detalhada fonte da mitologia nórdica, dividida em quatro partes praticamente impronunciáveis, tirando o Prólogo. Segue-se Gylfaginning, ou O Dilúvio de Gylfi, que se debruça sobre a criação e destruição do mundo; Skáldskaparmál, um diálogo entre Aegir, a personificação do mar, e Bragi, o deus da poesia; e Háttatal, um capítulo essencialmente prático que explica ao pormenor a construção linguística da antiga poesia do Norte da Europa. 

Thor acaba por ser a personagem principal de um caleidoscópio enlouquecido de figuras absurdas que vão rodopiando em redor da sua existência. Armado com o martelo Mjölnir, que tanto mata e fere como dá vida e cura, um instrumento com muito pouco que ver com os martelos tradicionais dos nossos dias, objeto de forma estranha mas com um evidente bocado feito para ser empunhado, com um cinto chamado Megingjörð (megin significa poder e gjörò significa cinto) que lhe duplica a força, e com umas luvas designadas por Járngreipr, feitas de ferro e que lhe permitem brandir o o Mjölnir, não falta nada a Thor para ser um super-herói como o Capitão América ou Flash Gordon, É com estes artefactos que parte para a guerra com Gjálp e Greip, duas jötnar, a tal espécie de duendes misturados com anões, filhas do gigante Geirröðr. Aqui, as coisas embicam-se um bocado porque as irmãs podem ser aparentadas com a tal família de anões e duendes mas de anãs não têm nada, bem pelo contrário, são duas mulheronas monstruosas que, no final, Thor acaba por matar. Para além deste velho confronto entre o Bem e o Mal, no qual o Bem (Thor) sai vencedor, como não podia deixar de ser, há uma forte componente marítima já que Gjálp e Greip são, igualmente, da família das ondas alterosas, coisa que os viquingues viam como inimigas quando se lançaram na sua aventura marítima que os levou às Ilhas Britânicas e, porventura, mais longe ainda, à costa da América.

Definitivamente, cada povo cria os mitos em conivência com as dificuldades que enfrenta e destrói os seus fantasmas à custa dos invencíveis que apresentam as suas características. Thor é, para todos os que já viram, seja onde for, a sua imagem, um guerreiro viquingue de ombros largos, peitudo, cabelo comprido em tranças. Um deus corajoso que depois de abater os gigantes se mede com a monstruosa serpente Jörmungandr e a atira para o oceano que rodeia Midgard, a representação da Terra. 

Com o decorrer do tempo, as representações de Thor foram-se tornando cada vez mais humanizadas, a ponto de poderem ser transportadas para os ecrãs por homens tão normais como simples atores de Hollywood. Em sueco, deu o nome à quinta-feira – torsdag, o dia de Thor, tal como os ingleses o absorveram em thursday. No movimento pagão da Alemanha moderna, posto em marcha no início do século XX, tomou um peso substancial nos ritos religiosos. E lá vamos encontrá-lo outra vez à quinta-feira na língua germânica que o apelidou de Donar e, daí, Donnerstag.

Não lhe coube, por outro lado, a ventura de outros seres tão poderosos como ele porque Thor não escapou à morte. Ela surge como a maldição de Ragnarök, uma série de eventos que conduzem ao fim do mundo e, em consequência, ao crepúsculo dos deuses, algo que nos faz soar campainhas wagnerianas na memória. E bem, porque Wagner mergulhou na mitologia germânica para erguer os alicerces da sua obra. O Ragnarök começa com um desfiar de catástrofes naturais e culmina no Fimbulvetr, o mais longo de todos os Invernos. Depois dele, só resta aos deuses lutarem até à morte contra os gigantes, uma guerra que dá lugar a um incêndio global apenas apagado quando as águas do mar cobrem toda a Terra. 

É nesse momento que cabe o advento da esperança. Líf e Lífthrasir são os sobreviventes, descendentes de humanos, e cabe-lhes a tarefa de repovoar o mundo. Ao fim ao cabo, nada que fique muito longe da história de Adão e Eva tal e qual nos era contada nas aulas de catequese. Por isso, quando Thor nos aparece, hoje em dia, plasmado no ecrã da televisão, não vale olhar para ele como mais um daqueles super-heróis chatos que estão sempre a salvar o mundo. Ele é, por assim dizer, muito mais humano do que isso. Basta ler a história da sua vida. Dá trabalho, mas vale a pena…