Trabalhos à porta fechada

Limpezas e manutenção, aposta nas visitas virtuais e preparação da reabertura: três altos responsáveis culturais levantam o véu sobre o trabalho de bastidores que está a ser feito nas suas instituições durante o confinamento.

Durante o confinamento geral, para quem as vê de fora, as nossas instituições culturais parecem paralisadas.
Monumentos como o Palácio da Pena, em Sintra, onde os turistas de máquina fotográfica em punho têm habitualmente de enfrentar longas filas de espera para entrar – num ano normal a Pena recebe perto de dois milhões de visitantes –, estão agora desertos. Mas nem por isso abandonados ou entregues à sua sorte.

Apesar do silêncio solene em que mergulharam os monumentos, museus e arquivos, para lá das portas fechadas a atividade não parou. Em modo de teletrabalho ou presencial, as equipas continuam a zelar para assegurar a resposta à procura online, bem como para preparar o momento, muito aguardado, em que poderão voltar a receber visitantes.

Além disso, há sempre trabalho de monitorização, manutenção, inventariação ou restauro para fazer, longe dos olhos do público. Por exemplo, só na segunda quinzena de janeiro, a equipa de restauro da Direção-Geral do Livro, Bibliotecas e Arquivos «intervencionou 3395 fólios de documentos que estavam em mau estado», explica o diretor-geral, Silvestre Lacerda.

Já no Museu Nacional de Arte Antiga – que também tem em curso um importante trabalho de restauro, dos Painéis de Nuno Gonçalves –, estão a ser feitos esforços para prolongar a exposição temporária Guerreiros e Mártires, cujo encerramento estava previsto para 28 de fevereiro. Em simultâneo, está já «em andamento» a grande exposição de 2021, a propósito do quinto centenário da morte do Rei D. Manuel, explica o subdiretor do museu das Janelas Verdes, Anísio Franco.

Na Pena, «a ausência de visitantes não alterou assim tanto as rotinas», garante o diretor, António Nunes Pereira. É certo que, face a essa circunstância, as limpezas não têm de ser tão frequentes. Ainda assim, há que abrir as janelas para contrariar a humidade e estar particularmente atento às questões de conservação, tendo em conta o «tremendo clima de Sintra».

Uma bela adormecida à espera de ser acordada 

Mesmo com as portas fechadas ao público – e até à grande maioria dos trabalhadores, que desenvolvem as suas tarefas a partir de casa – «a vida do monumento não para, sobretudo no que se refere às atividades de manutenção básica, como limpezas, monitorizações de estado de conservação, etc.», explica António Nunes Pereira, diretor do Palácio Nacional da Pena. Há que estar atento para, caso seja detetado «algum problema no edifício ou no acervo museológico», intervir «de imediato, evitando que quaisquer danos alastrem».

Mais liberto da gestão do dia-a-dia, o diretor do monumento reconhece que lhe tem sido possível, e à sua equipa, «concentrar-se mais na investigação histórica, que permitirá obter os conhecimentos que orientarão a conceção dos espaços expositivos». 

Nunes Pereira sublinha também a «aposta no digital», nomeadamente uma Visita Virtual 360º, «que agora se revelou preciosa», e «uma Linha do Tempo, que relaciona os diversos acontecimentos em Portugal e no mundo com os que marcaram o evoluir da obra do Palácio da Pena», ambos disponíveis no site da Parques de Sintra (www.parquesdesintra.pt), também recentemente reformulado.

Uma mudança importante, nesta fase, deu-se nas rotinas de limpeza. «É incrível a quantidade de pó que cada visitante arrasta consigo e que acaba por se depositar em pavimentos e objetos. Tal não acontece agora. Neste momento, é sobretudo necessário não esquecer o abrir das janelas para a entrada de luz e o arejamento, duas medidas simples que impedem o aparecimento de fungos ou bolor, mesmo num clima muito húmido como o de Sintra. Por outro lado, estando o palácio sem visitantes, aproveitou-se a oportunidade para se movimentar objetos de exposição mais pesados e inspecionar o edifício, executando pequenas obras de reparação», refere.
Mas quando o confinamento terminar e as portas do palácio mandado construirem meados do século XIX por D. Fernando II se reabrirem haverá novidades. «Aproveitámos para reorganizar o acervo museológico de algumas salas, além daquelas que foram recentemente remodeladas e que só puderam ser vistas pelo público por pouco tempo antes do fecho em janeiro. Entre restauros e remodelações completas, como as dos aposentos do último Rei de Portugal, D. Manuel II, e das salas de exposição dedicadas às figuras mais importantes que habitaram a Pena, e remodelações mais simples, como a da Sala do Chá da Rainha D. Amélia ou a do Atelier da Condessa d’Edla, os visitantes terão à sua disposição seis espaços praticamente inéditos», promete Nunes Pereira. O parque envolvente também «está cada dia mais belo e deslumbrante», considera.

E como é o ambiente neste palácio isolado, agora sem a vida dos turistas? Não se torna lúgubre ou sombrio? «A Pena tem um ambiente de uma beleza tão intensa que nunca se torna lúgubre, nem sombria, nem mesmo nos dias mais carregados ou chuvosos, com ou sem visitantes. Sem dúvida que há uma certa melancolia nestes espaços», descreve Nunes Pereira. «Mas eu prefiro atualmente comparar a Pena com uma Bela Adormecida, que em nada perdeu a sua beleza neste sono profundo. Ela apenas espera ser acordada, não por um Príncipe Encantado, mas por toda uma humanidade completamente rendida aos seus encantos irresistíveis». 

“Se deixamos parar a roda, ela depois leva muito tempo a acelerar”

«Por estarem as portas fechadas não quer dizer que não esteja ninguém cá dentro», começa por esclarecer Anísio Franco, subdiretor do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). «O museu, como qualquer casa, não convém estar fechado». Enquanto uns trabalham à distância, outros vão zelando pela segurança, pela limpeza e monitorização do estado de conservação das peças.

 Para o historiador, este pode ser «um tempo para refletir sobre as questões abrangentes de todos os museus», como foi aliás recomendado pela Direção-Geral do Património Cultural.

«Além disso temos trabalhado nas questões internas do museu», revela Anísio Franco. «As associações de museologia», continua, recomendam que «as exposições permanentes tenham uma reformulação de dez em dez anos». E se algumas partes do museu «tiveram uma revisão, como a Pintura e Escultura Portuguesa», já outras encontram-se «obsoletas». «Uma área fundamental que necessariamente terá de ser revista é a das Artes Decorativas, tanto portuguesas como dos contactos de Portugal com o mundo», reconhece. Com vista a essa reformulação «há um trabalho que está a ser desenvolvido nos bastidores, aquele trabalho que não se vê».
Também nos bastidores está já a ser preparada a grande exposição do ano. «Será dedicada ao centenário da morte de D. Manuel, em 1521, não há outro ano para comemorar essa data. Esse é um dos projetos que estão já em andamento bem acelerado», desvenda. Anísio Franco esclarece que esta «não incidirá tanto sobre os Descobrimentos», como A Cidade Global – Lisboa no Renascimento, mas sobretudo «nas questões administrativas do reinado de D. Manuel e os seus reflexos na criação artística».

Paralelamente, estão a ser feitos esforços para prolongar a exposição temporária Guerreiros e Mártires, que foi interrompida pelo confinamento e está previsto terminar a 28 de fevereiro. «É um trabalho incerto, mas também isso tem de ser preparado. Mantivemo-la na esperança de poder ainda reabrir, é uma exposição fantástica, muito, muito boa, que merece ser vista», considera.

Outra operação em curso é o restauro dos Painéis de Nuno Gonçalves, uma das joias da instituição. Os trabalhos não pararam, mas o seu ritmo foi afetado pelas circunstâncias. «Tínhamos de ter especialistas internacionais nomeadamente da área da análise técnica e científica do suporte, da pintura, do desenho subjacente, e por aí fora, que com o fecho das fronteiras não é possível. Isso provocou a desaceleração do restauro propriamente dito, que não pode ser feito sem ser feito todo esse trabalho prévio de exames e análises. Ninguém faz um trabalho daquela importância sem ter segurança absoluta do que está a fazer», explica o subdiretor do museu.

Mas há ainda outro aspeto talvez menos óbvio para quem desconhece o funcionamento de uma instituição como o Museu Nacional de Arte Antiga. «Há uma coisa tremenda nas instituições desta envergadura: se deixamos parar a roda, ela depois leva muito tempo a voltar a acelerar, custa a pôr tudo de novo em andamento», diz Anísio Franco.

E, para quem não está em teletrabalho e se desloca ao edifício das Janelas Verdes, como tem sido ver as salas e os corredores do museu vazios? Será que isso permite trabalhar com outra tranquilidade ou torna-se desmotivador?

«Para nós que trabalhamos cá há muitos anos, isto é mais a nossa casa do que a nossa própria casa, conhecemo-lo às escuras, conhecemo-lo às apalpadelas, e portanto nada disso nos faz qualquer mossa», considera o historiador.

Ainda assim, Anísio Franco reconhece que faz falta o público. «O público é para quem trabalhamos. Mesmo que possamos ter uma vida mais tranquila – e às vezes nem tanto… –, haja ou não haja visitantes temos muito que fazer, o trabalho não para. Mas o nosso objetivo é esse mesmo, dar isto ao público, o público é a nossa razão de existir. Não existindo público sentimo-nos abandonados. Mas temos a esperança de que isto é temporário e o museu vai reabrir, e de que vamos voltar todos a trabalhar muito em breve. Senão já estaríamos desanimados».

Dar uma vida nova a documentos antigos através da tecnologia

O dever de confinamento obrigou a fechar ao público as salas de leitura de arquivos como a Torre do Tombo, o cofre-forte da História de Portugal. Mas o resto da engrenagem continua em movimento. «Vamos respondendo aos vários pedidos de certificação de documentos, de reprodução de documentos e de disponibilização online que nos são feitos», revela Silvestre Lacerda, diretor-geral dos Livros, Bibliotecas e Arquivos. A atividade de conservação e restauro também tem prosseguido a bom ritmo. «No período de 15 a 30 de janeiro deste ano foram intervencionados 3395 fólios de documentos que estavam em mau estado», continua o responsável. 

Sobretudo por email, todos os dias chegam pedidos a que é preciso dar resposta. E, paralelamente, a Direção-Geral tem desenvolvido um trabalho de disponibilização de imagens que permite aos investigadores e estudiosos trabalharem à distância. «Neste momento temos cerca de 50 milhões de imagens já disponibilizadas na net, de que pode ser feito o download gratuito», revela Silvestre Lacerda.

Por enquanto, o número de funcionários que se encontram a trabalhar nas instalações da Torre do Tombo está reduzido ao essencial. Mas não podem ser dispensados, pois é preciso às vezes «ir buscar documentos diretamente aos depósitos ou fazer a digitalização, além do trabalho de restauro». Mas a maioria trabalha a partir de casa.

«Ao longo do último ano fomos criando condições para que numa situação deste género as pessoas possam trabalhar a partir de casa. Temos aqui os computadores ligados, uma parte de informática dá apoio, e estão a trabalhar remotamente como se estivessem cá. Fizemos a digitalização de instrumentos de pesquisa, de inventários, índices, etc., o que permite a qualquer um, a partir de casa, preencher os metadados necessários para os utilizadores fazerem a sua pesquisa», continua o responsável.

No fundo, trata-se de um casamento feliz entre documentos antigos de alto valor histórico e alta tecnologia. «Aqui na Torre do Tombo temos originais desde o século IX, e de alguma forma tentamos dar-lhes uma vida nova exatamente com a utilização dessas tecnologias», conclui.