Unabomber. A ténue linha entre o terrorista e o revolucionário

Série televisiva volta a dar protagonismo ao génio da matemática que se meteu num buraco e aterrorizou o mundo durante quase duas décadas. Desde então, passou mais duas noutro buraco, mas a corresponder-se com milhares de pessoas em todo o mundo

A última coisa que esperaríamos de uma série televisiva cujo enredo desbobina e tira o que lhe apetece do que foi a investigação do FBI que levou à captura do Unabomber, seria que, ao longo dos seus oito episódios, déssemos por nós a nutrir um certo fascínio pelo homem que encetou uma campanha de terror de 17 anos a partir de uma cabana em Lincoln, no estado de Montana. Construída por ele mesmo, com a ajuda do irmão, foi ali que se converteu numa espécie de eremita, na linha dos apaixonantes escritos de pensadores marginais como Henry David Thoreau, reduzindo ao essencial as suas necessidades, abdicando de todo o comodismo, toda a superficialidade. E, de tempos a tempos, fabricando bombas caseiras que expedia para alvos escolhidos a dedo usando o serviço postal norte-americano. O que se torna inquietante é o facto de não apenas darmos por nós intrigados com as noções defendidas pelo Unabomber, mas, por via dessa admiração, a relativizarmos a condenação moral pelo método que escolheu para fazer passar a sua mensagem.

Depois de mais de década e meia sem dar um passo, com crescente pressão do Departamento de Estado e um enorme investimento de meios e pessoal, o FBI parecia estar a perseguir a própria cauda. E mesmo se, por desespero, acabou por se virar para técnicas como a linguística forense – até ali encarada como uma disciplina algo esotérica -, talvez não tivesse capturado um dos mais enigmáticos criminosos com que se confrontou, não fosse o próprio Kaczynski a dar o passo que deixaria a sua cauda de fora. Acabaria por ser identificado pelo próprio irmão e pela cunhada depois de, no início de 1995, o ano anterior à sua captura, depois de ter proposto a seguinte ‘barganha’: se o “New York Times” publicasse um denso ensaio de 35 mil palavras chamado “A Sociedade Industrial e o Seu Futuro” – que dali em diante ficaria conhecido como o manifesto do Unabomber -, o grupo responsável pelos atentados que até ali se identificava simplesmente com a sigla “FC” (Freedom Club), não voltaria a enviar pacotes explosivos. O manifesto seria publicado pelo “The New York Times” e pelo “Washington Post”. E foi isto o que levou a que fossem detetadas as semelhanças entre algumas das ideias e da linguagem usada naquele documento e nas cartas que Ted dirigiu ao irmão, David, durante anos.

Exibida em Portugal pela Netflix, “Manhunt: Unabomber” é a primeira série de ficção do Canal Discovery, estreia que surpreende não só pela ousadia do enredo, pelas espinhosas e tão atuais questões que levanta, como pelos valores de produção e um elenco de luxo, liderado por Sam Worthington e Paul Bettany. O primeiro no papel do agente do FBI James R. Fitzgerald, o herói que, no esforço para apanhar o vilão, se irá confrontar com todos os aspetos contra os quais o segundo se revolta, pagando o preço de pôr em causa os métodos infrutíferos e circulares da investigação até ele se juntar à equipa. Distanciando-se da família, acabará, ele mesmo, por se ver na condição do pária, perseguindo Kaczynski, mas identificando-se cada vez mais com ele, transformando-se numa espécie de discípulo.

Fitzgerald reconhece o apelo e a relevância das denúncias feitas pelo prodígio da matemática, que deixou para trás uma prometedora carreira académica, e cavou um buraco longe do mundo, denunciando de forma brutal os aspetos mais desumanos da Sociedade Industrial e decidindo-se a expor os perigos que esta representa para a liberdade individual, e para a Natureza e vida selvagem.

O polémico manifesto dava novas dimensões a um homem que gerara pânico pela natureza aparentemente arbitrária dos seus ataques, provocando três mortos e 23 feridos graves, numa campanha de terror em que elegeu como alvos pessoas que considerava responsáveis pela destruição ambiental e pelo progresso tecnológico e científico, no qual via riscos apocalípticos. Um dos pontos cruciais da análise a que Kaczynski se dedica no documento prende-se com um conceito a que chama “o processo do poder”, ou essa inata necessidade humana de empreender uma série de metas autónomas e realizações que escapam a qualquer avaliação de riscos. Ele sublinhava que, apesar desta tentação ou necessidade psicológica, na moderna sociedade industrial não eram necessários senão esforços mínimos para satisfazer as necessidades físicas humanas. Ora, o que decorre deste desencontro entre o que é necessário para que as pessoas tenham uma vida condigna e o permanente esquema de superação que as condições industriais impõem, provoca o estado de desconcerto, desigualdade e miséria que conhecemos. Tudo agravado pelo facto de, mesmo nos países desenvolvidos, as pessoas padecerem de males como a depressão, o desamparo social, o vazio existencial. E Kaczynski sublinha que, ainda que haja quem consiga superar estes efeitos secundários através da dissolução da consciência em atividades frenéticas, de resto encorajadas pela lógica consumista, esta substituição da vida é o que está na raiz de um maior grau de alienação.

Um dos exemplos de que a série se serve para ilustrar as ideias do manifesto é o conjunto de avanços que tornou comum as pessoas terem carro próprio. O que começa por ser encarado como uma óbvia vantagem, pelo encurtar das distâncias, pela mobilidade acrescida de quem tem sempre a possibilidade de se meter no carro e zarpar em qualquer direção, acaba por revelar-se uma espantosa armadilha. A partir do momento em que toda a gente tem carro, este impõe-se-nos. Já não é uma vantagem, mas uma obrigação. As próprias cidades passaram a ser projetadas pensando primeiramente naqueles que se deslocam no seu interior de carro, com o espaço público a degradar-se a favor da circulação. O peão torna-se o intruso, flanar pelas ruas é estar sujeito a uma série de interdições, de obstáculos. E quem, no século passado, se deu conta do perigo da generalização do uso do carro, neste século ter-se-á já dado conta do quanto a generalização do uso dos telemóveis, das redes que mantêm as linhas abertas 24 sobre 24 horas, é o mais ardiloso passo dado pela sociedade tecnológica no sentido de virar o indivíduo do avesso, expurgá-lo dos seus recantos sombrios, das suas defesas ociosas, solitárias, da sua vida interior, dessa última fronteira que o defende dos imperativos que o funcionalizam. 

Apesar de uma receção amplamente favorável, com boa parte da crítica a tecer-lhe louvores, a série criada por Andrew Sodroski não está isenta de opções de dramatização (ou ficcionalização) questionáveis. Desde logo, toda a luta interior e a transformação pessoal do agente Fitzgerald não passam de um isco dramático. Baseado numa pessoa real, um agente do mesmo nome, que esteve de facto envolvido na investigação, embora apenas por uns meses, tendo posteriormente escrito um livro puxando a brasa à sua sardinha, no qual a série em parte se baseia. Quando esta saiu, admitiu que a história contada se mantinha fiel à realidade em 80%, sendo 20% ficção. Mas basta investigar um pouco na internet para perceber que o verdadeiro Fitzgerald é, na verdade, um oportunista a tentar ficar com os louros por um esforço de dezenas de pessoas, sendo a personagem interpretada por Sam Worthington uma obscena figura compósita, que arranca um herói do contributo dos vários agentes que, em diversos momentos, contribuíram para não deixar que a investigação morresse, e que tiveram de reescrever o manual sempre que o rastro do Unabomber ficava frio demais para recolher novas pistas.

O grande balde de água fria para quem se deixou cativar pelo envolvimento entre o agente e o criminoso é saber que, na verdade, os dois nem sequer se conheceram. Confrontando a ficção com a realidade, o mais difícil é como entre uma e outra se quebra o vínculo emocional entre duas personagens que fazem a ponte sobre o fosso entre lados opostos da lei. Depois, nas interrogações que a série planta dentro de nós, a sensação de logro dá lugar à noção de que o tal Fitzgerald é agora a audiência, que, intrigada, deseja saber mais sobre os motivos do brilhante matemático a contas com quatro penas de prisão perpétua.

Na cela minúscula da prisão de máxima segurança em Florence, no Colorado, onde há duas décadas vive 23 horas por dia trancado, Kaczynski tem mantido correspondência com milhares de pessoas em todo mundo. E é assim, no um para um, que vem corrigindo a perceção pública que, segundo ele, foi distorcida para dar imagem de um tipo brilhante que em algum momento fritou. De resto, muitos não deixaram de denunciar os aspetos orwellianos do julgamento no qual acabou poupado à pena de morte, depois de ser pintado em tribunal e nos media como um paranoico esquizofrénico mas “altamente funcional”. William Finnegan, que cobriu o julgamento em 1998, publicando um artigo na “New Yorker”, com o título “Defending the Unabomber”, disse já em 2011 que tinha ficado convencido de que “foi constituída uma aliança de conveniência entre os procuradores, os psiquiatras, especialistas de prevenção da pena de morte, os próprios advogados de defesa e até o juiz, para levar Kaczynski a xeque-mate, obrigando-o a assumir-se como culpado e a receber a pena perpétua, sem margem para um pedido de liberdade condicional”. 

Finnegan adiantou que, “por uma variedade de razões, ninguém queria que o Unabomber tivesse o seu dia em tribunal, onde poderia ter explicado por que fez o que fez”. E lembrou o que James Q. Wilson, um cientista social conservador, escreveu na altura num artigo de opinião no “The New York Times”, depois de analisar o manifesto do Unabomber: “Se isto é obra de um louco, então os escritos de muitos filósofos políticos – Jean Jacques Rousseau, Tom Paine, Karl Marx – eram pouco mais sãos”.