Vidas cruzadas ou a cruz das nossas vidas?

Na vida nem tudo são coisas boas. Há sempre um lado mau, nuvens negras que encobrem o Sol mergulhando-nos na escuridão das trevas 

Como médico, sei que é fundamental saber ouvir as pessoas, independentemente do local onde nos procuram. Ao aceitar esta colaboração regular com o jornal SOL, a minha responsabilidade nesse campo aumentou – visto eu estar sujeito à exposição pública. E, daí, ter de saber conviver com críticas e elogios.

Neste contexto, fui recentemente abordado (fora dos meus locais de trabalho) por alguém que, conhecendo os meus artigos de opinião, me disse: «Sabe, doutor, sempre que escreve sobre a família, fico a tremer por dentro…». «Porquê?», perguntei surpreendido. A pessoa foi logo direita ao assunto e abriu o jogo, revelando uma situação muito comum nos nossos dias. 

Um reformado, com uma única filha e um neto único, não se conformava com a separação da filha e com a nova vida que tinha arranjado, juntando-se com um companheiro também ele com filhos. Por sua vez, o genro encontrara outra pessoa de quem já esperava uma criança. 

Dizia-me ele: «Não me consigo adaptar a estas vidas cruzadas». Respondi-lhe nestes termos: «Compreendo o seu sofrimento, mas nos dias de hoje isso é muito frequente. Nada pode fazer para o evitar. São sinais dos tempos… Vai ter que aprender a conviver com isso». Já mais conformado, concluiu assim: «Eu sei. É a minha cruz…».

Imagino o sofrimento deste homem, não duvido, mas interrogo-me como será o futuro do seu neto. Não serão estas crianças vítimas destas convulsões da sociedade? Que família irão elas constituir perante o exemplo que nós, os adultos, lhes estamos a dar?

A cruz que o pobre pai vai ter de suportar ninguém lha poderá tirar de cima. E é apenas um dos muitos exemplos da cruz que cada um de nós tem – e que, melhor ou pior, terá de carregar até ao fim dos seus dias. «Se alguém quiser seguir-Me, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me» Mc 8, 34.

Tudo isto serve para dizer que na vida nem tudo são coisas boas. Há sempre um lado mau, nuvens negras que encobrem o Sol mergulhando-nos na escuridão das trevas que podem demorar a passar, trazendo consigo desânimo, tristeza e desilusão. Temos de nos conformar e estarmos preparados para isso – o que varia muito de pessoa para pessoa.

Nesta questão, a minha experiência permite-me identificar três grupos. 

O primeiro, talvez o mais frequente, diz respeito àqueles que se revoltam com o peso da sua cruz e não se conformam com as exigências que ela lhes impõe. «Porquê a mim?». «Não merecia isto!». «Que mal fiz eu?». São expressões ouvidas com frequência aos que encaram o sofrimento como um castigo, ou como um preço a pagar pelas falhas que tiveram, ou pelos erros cometidos ao longo da vida. 

Outros há que, embora reconhecendo a existência da cruz, preferem ignorá-la, procurando alternativas à sua forma de viver, para manter as aparências. Há casais que, apesar de continuarem casados, fazem cada um a sua vida – agarrando-se às comissões de serviço no estrangeiro ou aos cursos de formação, sempre fora do normal ambiente familiar, fingindo que tudo vai bem.

Finalmente, o último grupo. Que é talvez o menos frequente e é exclusivo apenas de alguns: os que aceitam incondicionalmente a sua cruz tal como ela é. 

Apresento apenas dois exemplos. 

Um, a forma carinhosa como uma idosa portadora de doença neurológica ‘arrastada’ é tratada pelo seu marido. Ele, na casa dos oitenta, lida com o problema serenamente, sempre com um sorriso nos lábios, sem nunca se queixar do ‘peso’ que carrega. Fico sem palavras quando entram no meu gabinete. Que exemplo! 

O outro caso tem a ver com o testemunho de outros dois idosos, Olga e João, internados por necessitarem de cuidados continuados. Ele aceitando pacificamente a sua situação sem qualquer sinal de azedume e ela que abdicou totalmente da sua vida para cuidar do marido. Quando eu estava no seu quarto, era um encanto ver os dois com a mão em cima uma da outra como que desenhando uma cruz. Que maravilha! Olga continua connosco. Do João ficou apenas a saudade e um testemunho para a História difícil de imitar.

Após esta reflexão, deixo no ar uma pergunta que faço a todos: «Como lidamos nós com a nossa cruz?».

(À memória do Dr. João Silva)