Vigiai!

Ainda há bem pouco tempo, entrou-me no consultório para uma consulta de rotina uma senhora de quase setenta anos, com ar triste, parecendo pedir auxílio.  Vestida de preto, de óculos escuros e semblante carregado, entrou no meu gabinete em silêncio, sem conseguir depois conter algumas lágrimas.  Perdera o marido recentemente, e com ele uma relação…

Ainda há bem pouco tempo, entrou-me no consultório para uma consulta de rotina uma senhora de quase setenta anos, com ar triste, parecendo pedir auxílio. 
Vestida de preto, de óculos escuros e semblante carregado, entrou no meu gabinete em silêncio, sem conseguir depois conter algumas lágrimas. 
Perdera o marido recentemente, e com ele uma relação de muitos anos de vida em comum, carregada de boas recordações. Deixei-a falar e incitei-a, a seguir, a traduzir por palavras aquilo que lhe ia na alma. Assim aconteceu. 
Custava-lhe aceitar a partida do marido, dizendo mais de uma vez não estar preparada para o drama que lhe estava reservado. Ao fim de algum tempo, perguntei: «Já viu o que poupou ao seu marido? Imagine se tivesse acontecido o contrário. Como estaria agora o seu marido se lhe faltasse a mulher?». «Credo! Era o pior que lhe podia suceder… Sentir-se-ia perdido no mundo», respondeu ela convictamente e um pouco mais conformada. 

De facto, citando Thomas Mann, «a morte de uma pessoa é um problema maior para os vivos do que para aquele que morre». E, pegando nas palavras da doente ao insistir que «não estava preparada», veio-me à ideia o texto bíblico de S. Mateus: «Vigiai! Não sabeis o dia nem a hora. Se o dono da casa soubesse a que horas viria o ladrão, estaria vigilante e não deixaria arrombar a sua casa…». 
Refletindo sobre esta mensagem, sente-se o apelo implícito à necessidade de estarmos preparados, pois ninguém sabe como será o dia de amanhã. E, na maioria dos casos, não estamos. Na ânsia (por vezes desmedida) de mais e de melhor, acabamos por não viver bem o momento presente – não dando valor ao dia de hoje, por não nos ‘conformarmos’ com aquilo que temos (e que já achamos normal e natural no ser humano). 

Mas se é verdade que ninguém tem o futuro nas mãos e nada pode fazer para evitar o que é inevitável – isto é, o fim da vida -, é nossa obrigação defendê-la, fazendo o que nos compete, o que nos é exigido e o que está ao nosso alcance. E será que o fazemos?
Se nos lembrarmos que há tanta gente a recusar assistência médica, não é caso para lhes dizer «Vigiai!»? Em quase todos os centros de saúde há uma percentagem de inscritos que lá não vai, que se desconhece se tem ou não outro sistema de saúde e, mesmo, se tem ou não acompanhamento médico! A esses não se lhes devia dizer também: «Vigiai»? 
E os utilizadores propriamente ditos estarão todos ‘preparados’ e a defender corretamente a sua saúde, seguindo as indicações dos seus médicos, ou andarão desnorteados ouvindo outras opiniões ou agarrados às ‘internetes’ que os lançam ainda mais na confusão? Não precisarão de ‘alguém’ que lhes diga «Vigiai!»?

Um dos sinais de alerta mais preocupantes tem a ver com o aumento do número de casos de cancro. 
No SOL de 23/9 não me passou despercebida a notícia Cancro mata cada vez mais, conclusão do relatório do programa nacional para as doenças oncológicas, que fala num aumento de 0.46% relativamente ao ano anterior. Perante tão preocupante conclusão, é caso para perguntar: qual a razão para este lamentável aumento? Para onde estamos nós a caminhar? É isto que queremos? Que andam a fazer os centros de saúde? De que se está à espera para investir a sério na prevenção? Não tenhamos dúvida: ou se alteram as regras de funcionamento do atual sistema ou dentro de algum tempo os resultados serão ainda piores. Os centros de saúde não podem continuar asfixiados por normas burocrático-administrativas que destroem logo à nascença a sua mais nobre missão: a prevenção!
Por isso – e para não sermos confrontados com mais resultados desanimadores como estes – é preciso trabalhar enquanto é tempo. Não queiramos ser forçados a ter de remediar o que não fomos capazes de prevenir. Com a mão na consciência, encaremos os maus resultados do presente como um aviso para nos empenharmos na resolução de um problema que é de todos nós. «Vigiai!».