Viver

E se nós (todos) assim fizéssemos? Tratando carinhosamente dos nossos velhos, todos seriam bem tratados, por direito próprio.

Recebi há poucos anos uma maravilhosa lição sobre a vida e o seu valor.

Acompanhei durante algum tempo – uma hora, mais ou menos – uma mulher idosa. Era cega, por isso precisava da minha companhia; descobri rapidamente que eu precisava mais dela do que ela de mim.

Vivia sozinha num pequeno apartamento de Lisboa. Tivera as visitas de um sobrinho que lhe vinha pedir dinheiro e lhe batia se não o obtinha. Explicou-me que o dinheiro de que podia dispor eram os poucos euros de uma pensão abaixo dos 300 euros, mas que o sobrinho queria tudo. Obtivera a cumplicidade amiga da vizinha de patamar para mudar a fechadura da porta. Mas continuava a ir à rua com receio, não fosse o sobrinho estar à espera.

O marido morrera há muito e filhos não tinha. Vivia totalmente sozinha, dia a dia, ano a ano. Perguntei-lhe como se entretinha – o que lhe quisera perguntar era como sobrevivia à solidão.

Ficou surpreendida, senti-o. Vivia em conversa consigo mesma; ouvia rádio; tinha recordações. A vida valia a pena em si mesma, sem mais, compreendi: sozinha nunca se tinha sentido. Chegavam-lhe os ecos, embora ténues, da vida em redor de si, pensava-se integrada numa sociedade viva e que contava com ela.

Contava com os outros: com a vizinha do patamar, com as pessoas que a auxiliavam na rua, com os empregados da mercearia que a ajudavam a procurar os produtos nas prateleiras. Que comia?… Pois, coisas boas, dizia ela, ovos cozidos que sabia preparar no fogão eléctrico, leite, fiambre, fruta. E achava que ainda estava em condições de partilhar com alguém necessitado. Sabia que um dia talvez não tivesse possibilidade de sair de casa para as comprar ou de fazer a comida. Mas esse dia ainda não tinha chegado. Preocupava-se constantemente em perguntar se não me estava a roubar o meu tempo. Respondia-lhe sempre que era ela que me estava a dar o tempo dela. Que não queria ser pesada aos outros, repetia-me.

Lembrei-me de quantas vezes ouvi isto de velhos da minha família ou de jovens que sabiam que iam ser velhos.

Dizia-me tudo em voz tranquila, sem sobressaltos, sem tristeza, sem pedidos, sem zanga. Esperava, um dia, talvez no dia seguinte, talvez muitos anos depois, encontrar-se com o marido com os pais, com os avós, no Paraíso. Sentia-se uma especial ternura pelos avós. Confidenciou-me tranquilamente que tinha uma verdadeira paixão por eles, 70 depois do falecimento. Sabia que a festa perpétua estava para vir e esperava-a confiantemente.

Custou-me separar-me dela. Foi uma das pessoas que me deu mais na vida. E eu recebi sem pejo e tenho tentado aproveitar. Ensinou-me, através do seu exemplo, que para a vida ter valor, basta viver. Ela não sobrevivia: vivia.

Depois disso tenho estado ainda mais atento às lições que me dão os velhos, as crianças, os doentes, os prejudicados mentalmente. Têm tanto para dar e ensinar-me que qualquer vida vale a pena ser vivida. Cabendo-me a mim dar-lhes um pouco da minha, muito gratamente. E tentar, como tento, que a sociedade viva também com eles e para eles em todos os planos da existência.

Conheço muitos voluntários de casas de acolhimento de velhos. Voluntários de todas as idades e de todas as formações, desde teatro e música até Economia e Direito. Há dias assisti a um jantar numa dessas casas servido por uma jovem música.

Mas conheço ainda mais voluntários dentro das suas próprias famílias. Cuidam dos idosos. Revezam-se a fazer-lhes companhia nos hospitais. Conversam com eles horas a fio. Mantêm-nos integrados na família e na vida. Restabelecem a ligação que eles tinham à sua actividade profissional. Fazem sacrifícios económicos, colocando-os à frente. Sentem a importância dos mais velhos, cheios de amor por eles. Assim, os mais velhos não se limitam a sobreviver, auxiliados materialmente com subvenções (tão importantes!) de filhos e netos ou da sociedade. Vivem a vida que sempre viveram. Não há soluções de continuidade.

E se nós (todos) assim fizéssemos? Tratando carinhosamente dos nossos velhos, todos seriam bem tratados, por direito próprio. Não estaríamos a fazer-lhes um favor. Possivelmente seriam eles que o estariam a fazer a nós. E a sociedade e o Estado tratariam como investimento social aquilo que efectivamente o é.