Volkswagen: A queda de um símbolo

A sede da Volkswagen é a cara da Alemanha. A maior fábrica de carros do mundo é do tamanho de Gibraltar e até produz salsichas. Wolfsburgo tem o PIB per capita mais alto do país, mas terá de entrar em contenção. A fraude «afetou as pessoas de uma maneira muito forte».

A Volkswagen (VW) faz muito mais do que automóveis. Na sede do grupo em Wolfsburgo – uma cidade construída de raiz para albergar a produção da maior fábrica de carros do mundo, com uma área superior a Gibraltar – uma equipa de 25 funcionários tem uma tarefa particular: todos os dias produzem milhares de salsichas para alimentar outros tantos milhares de trabalhadores da unidade.

Nesta fábrica de salsichas ao lado das linhas de produção, o prato típico alemão não deixa dúvidas: a Volkswagen é a imagem da Alemanha, e o escândalo das emissões nos seus carros abre uma ferida profunda no país. «A identificação das pessoas com a indústria é muito grande. A fraude na Volkswagen afetou as pessoas de uma forma ainda mais forte do que o caso da manipulação das taxas de juro pelo Deutsche Bank», disse ao SOL Martin Gornig, um economista alemão que trabalha no instituto DIW Berlin.

Não é de estranhar que os habitantes da cidade – 120 mil no total, sendo que a fábrica emprega 72 mil pessoas da região  – venham a perder um pouco do estilo de vida que trouxe a Wolfsburgo o PIB per capita mais elevado da Alemanha, a rondar os 100 mil euros por ano.

A torneira que fecha

Tudo gira em torno da fábrica, desde a equipa de futebol da Bundesliga ao museu de ciência Phaeno, passando pelo pequeno quiosque de jornais que agora traz as más notícias. Uma delas esta semana já dizia respeito ao clube Wolfsburgo: o projeto de construção de um novo centro de treinos foi suspenso.

O grupo automóvel já anunciou um corte na despesa de mil milhões de euros anuais – menos de um ano depois de prever investimentos de 85,6 mil milhões de euros em cinco anos. E, tanto como estratégia comercial como de marketing, vai apostar mais nos carros híbridos e elétricos para recuperar a imagem perdida.

É de esperar que todos os ‘negócios paralelos’ – ralis, corridas de pista, patrocínios culturais e científicos ou contratos com arquitetos de topo – venham a sofrer. Talvez mais até do que as fábricas e veículos, o core business. E apesar da sobriedade que já caracteriza as marcas alemãs, também a aposta nos salões automóveis – particularmente o de Frankfurt, onde o grupo é rei –, apresentações de carros e eventos de charme deve ter limitações orçamentais.

No entanto, no dia 22 de Setembro, logo após o escândalo das emissões rebentar nos Estados Unidos, a marca ainda pôde contar com Lenny Kravitz para um concerto em Nova Iorque. Servia para lançar o novo Passat no país, logo um dos modelos que nas versões anteriores levantou o pano sobre a fraude das emissões poluentes adulteradas nos diesel.

Da cidade para o mundo

Mas não é só Wolfsburgo e a Alemanha. Milhões de pessoas em todo o mundo estão de olhos postos no escândalo, temendo repercussões diretas ou indiretas (ver caixa ao lado). A Volkswagen AG – que controla as marcas ‘polémicas’ VW, Audi, Skoda e Seat, mas também a Bentley, a Bugatti, a Lamborghini, as motas da Ducati, os camiões da MAN e da Scania, e os autocarros Neoplan – emprega quase 600 mil pessoas e tem 100 fábricas em 27 países.

Para a Alemanha, onde 20% das exportações e um em cada sete empregos dependem do setor, os potenciais impactos negativos assustam. Os custos com a correção das emissões em 11 milhões de carros a gasóleo farão seguramente com que a empresa tenha prejuízos nos próximos anos. Para piorar a situção, as autoridades alemãs exigiram esta semana que 2,4 milhões de carros sejam chamados imediatamente à oficina, ao contrário do que queria o grupo liderado por Matthias Müller: começar a chamar clientes para o recall em janeiro.

E ainda antes do escândalo das emissões, o abrandamento económico da China fez com que a marca vendesse menos carros naquele importante mercado asiático. Também por isso, as exportações alemãs sofreram em Agosto a maior queda desde 2009. «O impacto depende crucialmente se é um problema da VW ou da tecnologia diesel em geral. Se outros fabricantes premium forem afetados, isso pode fazer com que a indústria automóvel seja duramente atingida e haverá um impacto assinalável na economia alemã como um todo», considera Gornig.

Governo português em contacto com Müller

A Volkswagen já perdeu um quarto do seu valor em bolsa e as outras fabricantes também apanharam com os fumos de escape na negociação de ações.

O receio de que a Alemanha entre em recessão despertou e faz temer pelo futuro dos principais parceiros económicos do país. A maior economia da Europa, que representa um terço do PIB da Zona Euro, é o motor de uma região ainda a sarar feridas de uma vaga de crises internacionais que começaram em 2007/2008.

Portugal não escapa à incerteza. A Alemanha é o segundo principal parceiro comercial do país e as exportações podem ressentir-se. «Por enquanto é difícil dizer que efeito terá o caso Volkswagen. Ainda não se sabe o que vai dar, mas não é bom», admite ao SOL Teodora Cardoso, presidente do Conselho das Finanças Públicas.

Uma coisa é certa: com a fábrica Autoeuropa, em Palmela, a ser o maior exportador português, e envolvida também no escândalo das emissões, qualquer ‘espirro’ da Alemanha e da Volkswagen pode ‘constipar’ Portugal.

O Governo português está atento à situação na Alemanha. Ao que o SOL apurou, o Executivo vai estar em contacto direto com Müller para validar o que tem sido transmitido pela Autoeuropa: que o investimento de 677 milhões de euros até 2019 na fábrica de Palmela não está em causa.

Uma indústria de milhões

São vendidos anualmente cerca de 80 milhões de carros e grande parte deles têm ‘Alemanha’ escrito nalgum lado. Além do grupo Volkswagen, há várias outras marcas alemãs com peso imenso no setor. A Daimler, com as suas marcas Mercedes-Benz, Smart e várias outras de camiões, autocarros e motas, vendeu 2,5 milhões de veículos e dá emprego a quase 280 mil pessoas. A BMW, com 2,11 milhões de carros da sua marca, da Mini e da Rolls Royce, e ainda 120 mil motas, emprega mais de 116 mil pessoas. Mesmo as subsidiárias de outras marcas valem milhões na Alemanha. A Opel, do grupo General Motors, vendeu mais de um milhão de carros e tem cerca de 35 mil funcionários. E da americana Ford dependem quase 30 mil pessoas na Alemanha. Depois ainda há a gigante Bosch, para quem trabalham 290 mil pessoas. 60% do volume de negócios da multinacional alemã no ano passado veio do setor automóvel. Finalmente na Continental, gigante do fabrico de pneus sedeada em Hanover, operam mais de 200 mil pessoas. A estes haveria que juntar milhares de outros fornecedores externos, desde grandes multinacionais a pequenas empresas especializadas em dois ou três tipos de peças.

O mundo num carocha

Como outras empresas alemãs, a Volkswagen nasceu em pleno regime nazi, em 1937, impulsionada por Hitler para fabricar o pequeno Carocha. E foi o ‘carro do povo’ que permitiu à marca sobreviver e crescer no fim da guerra, tornando-se um dos mais vendidos de sempre, com 21,5 milhões de unidades. Abriu a porta para o crescimento da empresa, que sempre manteve uma linha de sobriedade, segurança e fabrico sólido. Focada na classe média, não pretendia fazer os melhores carros ou os mais baratos, mas gerar a ‘confiança’ que parece ter desaparecido nas últimas semanas. Com o passar dos anos, a VW comprou a maioria da Audi (1965), da Seat (1986), da Skoda (1994) e praticamente fundiu-se com a Porsche nos últimos anos. Em 2014 vendeu 10 milhões de carros e preparava-se para um ‘assalto final’ à Toyota, que deverá manter-se este ano como maior fabricante mundial.