Zelenski. De Presidente na ficção para a realidade, prova que não se nasce político: torna-se

“Herói Judeu”, “Herói que nasce numa cidade agitada pela guerra” ou “George Washington da Ucrânia” são alguns dos títulos atribuídos a Volodymyr Zelenski. Mas, afinal, quem é o comediante que se tornou político?

Nos anos 60 e 80 do séc. XX nasceu a segunda vaga do feminismo, fortemente marcada pela frase “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, da escritora francesa Simone de Beauvoir. Entendeu-se que a feminilidade não é uma condição biológica, mas sim uma construção social. Esta máxima pode adaptar-se a Volodymyr Zelenski: não nasceu político, tornou-se.

Quem diria que o homem que viria a liderar a Ucrânia no decorrer de uma das maiores guerras da Europa desde 1945 seria um outrora ator e comediante? Conhecido por participar em comédias românticas e, mais recentemente, na série Servant of the People, uma sátira política em que interpretou o papel de Vasyl Petrovych Holoborodko, um professor do ensino secundário, na casa dos 30 anos, que se tornou Presidente da Ucrânia de forma inesperada.

No pequeno ecrã, tal aconteceu depois de um vídeo filmado por um dos seus estudantes – onde é possível vê-lo fazer um discurso profano contra a corrupção do governo naquela nação – se ter tornado viral. Na realidade, a história não é assim tão simples. Filho de pais judeus, Zelenski nasceu a 25 de janeiro de 1978 em Kryvyi Rih, no centro da Ucrânia. Durante quatro anos, esteve em Erdenet, na Mongólia, e quando regressou à terra natal tornou-se fluente em ucraniano e inglês.

A queda do muro que dividia a capital alemã em dois – à semelhança do mundo pós-II Guerra Mundial que se dividia entre comunismo e capitalismo – aconteceu quando o atual dirigente tinha 11 anos, em 1989. O fim da divisória entre as duas partes da cidade foi o começo do fim da União Soviética e, assim, o império russo começou a dissolver-se abrindo as portas a países como Estónia, Letónia e Lituânia.

No ano de 2000, formou-se em Direito pela Universidade Nacional de Economia de Kiev, contudo o amor pela representação já falava mais alto e acabaria por nunca exercer nenhuma profissão ligada à área. Em 1997, com 19 anos, participou nas finais da competição KVN – Klub vesyólykh i nakhódchivykh (“Clube das Pessoas Engraçadas e Inventivas”), fundando o grupo de comédia Kvartal 95. 

Até 2003 – ano em que casou com Olena Kiyashko, antiga colega de escola com quem tem uma filha, Oleksandra, de quase 18 anos e um filho, Kyrylo, de nove –, os membros da equipa passaram a maior parte do tempo em Moscovo e nos países pós-soviéticos. Nessa época, dedicaram-se à produção de programas televisivos para o canal ucraniano 1+1, mudando-se para o Inter em 2005. Volvidos três anos, iniciou uma carreira cinematográfica enquanto protagonista nos filmes Love in the Big City e Love in the Big City 2.

Tudo correu bem até agosto de 2014, quando se manifestou contra a intenção do Ministério da Cultura ucraniano de banir artistas russos – e o respetivo trabalho – do país. A 7 de agosto, na sua página oficial do Facebook, escreveu uma publicação polémica. “Mas quando é que nos tornámos vegetais? Eu pessoalmente não considero os nossos irmãos artistas como tal”, sublinhou. Nesse sentido, salientou que a banda ucraniana Okean Elzy – que enchia auditórios na Rússia – e as russas Grigory Leps e The Time Machine estavam a fazer exatamente o mesmo na Ucrânia. “Isso diz-nos muito não só do amor dos espectadores pelo grupo ucraniano, pelas suas músicas, mas também sobre glorificar, se quiserem, promover a Ucrânia na Rússia, divulgar a nossa cultura e a beleza da nossa música”, declarou.

De Presidente inexperiente que “devia atuar em palco” a herói da Europa Depois de os órgãos de informação ucranianos terem noticiado que durante a Guerra em Donbass o Kvartal 95 havia doado 1 milhão de hryvnias – equivalente a 29,742.08 à taxa de câmbio atual – ao exército ucraniano, vários políticos e artistas russos pediram que todas as suas obras fossem banidas. Mais uma vez, Zelenski insurgiu-se.

Em 2015, ascendeu ao estrelato sendo protagonista da série Servant of the People e, até 2019, manteve-se nesse papel e participou nos filmes 8 New Dates (2015) e I, You, He, She – o primeiro trabalho em língua ucraniana (2018). Em março de 2018, o partido Servant of the People foi criado por Zelenski e Ivan Bakanov. Porém, em termos legais, esta força política é sucessora do Party of Decisive Change que teve início em abril de 2016.

Já em março de 2019, em entrevista ao alemão Der Spiegel, Zelenski disse que ingressou na política para restaurar a confiança nos políticos e deixou claro que ambicionava “levar pessoas profissionais e decentes ao poder” e “realmente gostaria de mudar o humor e o timbre do establishment político, tanto quanto possível”. Nessa altura, já levava a cabo uma campanha presidencial bem-sucedida realizada quase inteiramente no mundo virtual com o objetivo de destituir Petro Poroshenko, algo que viria a ocorrer em julho de 2019.

À época, os ucranianos tinham ido às urnas para votar em eleições legislativas antecipadas, pouco depois das presidenciais de 21 de abril, em que havia sido eleito “Volodymyr Zelenski, de 41 anos, um comediante popular, que ficou com um país dividido por uma guerra civil nas mãos”. As sondagens à boca das urnas davam ao partido de Zelenski – chamado Servidor do Povo (em português), com cerca de 44% dos votos, muito perto da maioria absoluta.

Assim que foram divulgadas as sondagens, o Presidente propôs uma coligação aos liberais pró-Europa do Holos (ou Voz, em ucraniano), o então recém-formado partido de Svyatoslav Vakarchuk – vocalista da famosa banda de rock Okean Elzy (que elogiara anteriormente), que teria cerca de 6%. Zelenski já tinha essa intenção “ainda antes das eleições”, afirmou – havia quem mostrasse preocupação quanto à falta de experiência do dirigente. “Não vejo pessoas profissionais [na equipa de Zelenski]. São pessoas do espetáculo e deveriam atuar em palco”, confessou à Reuters Vladimir Lantukh, um apoiante de Poroshenko. 

Mas parece ter existido uma mudança de paradigma desde o início do conflito armado. Uma das posições que mais têm sido partilhadas nas redes sociais é a de Emil Iulian Mladin, membro do Partido Alternativo de Direita da Roménia que se candidatou a presidente da cidade de Craiova, em 2020, mas perdeu para a social-democrata Lia Olguța Vasilescu.

“Olha para ele, tem 44 anos e tem uma família linda, é a esta hora o último homem de verdade do mundo, o único homem que não fugiu do agressor russo!”, redigiu o político que desempenha funções enquanto empresário. “Ele podia encher um avião com dinheiro e sair da Ucrânia, não o fez, podia esconder-se num bunker, não o fez. Ele podia entregar o país aos russos, não o fez. Em 48 horas, este homem pode ter ido embora, mas o que ele fez pelo seu país, ninguém fez desde a Segunda Guerra Mundial!”.

“Neste momento posso colocá-lo na mesma linha que Churchill ou Roosevelt! O mundo é governado por covardes, senis, globalistas, marxistas, neo-marxistas! Enquanto esse homem defende o seu povo, todos os outros não sabem como reprimi-lo!”, acrescentou ao texto. “Este é o mundo do nosso século, uns morrem pela liberdade, outros gozam com isso! Zelenski, o último herói da Europa!”.

“Estou pronto para fazer tudo para que os nossos heróis não morram ali, estou pronto para perder a minha popularidade e, se necessário, o meu lugar para que possamos ter paz”, asseverou, em 2019, referindo-se à guerra civil no leste do país, em Donbass, onde o Governo enfrentava há cinco anos separatistas apoiados pela Rússia. 

“Durante a campanha presidencial, Zelenski conseguiu manter o foco nas suas reivindicações anticorrupção, evitando os rótulos pró-Ucrânia ou pró-Rússia, que definiram praticamente todos os atores políticos desde o início da guerra civil, que levou à morte de mais de 13 mil pessoas e à anexação da Crimeia pela Rússia. 

Atualmente, o modo como Zelenski – que reúne consensos, sendo encarado pelos media internacionais como “Herói Judeu” (The Atlantic), “Herói que nasce numa cidade agitada pela guerra” (The Washington Post) ou “George Washington da Ucrânia” (Los Angeles Times) – pretende tentar erradicar este clima bélico que se prolonga diretamente das opções de Vladimir Putin.

Por mais pontos de interrogação que existam, ninguém o poderá acusar de ter desistido da Ucrânia. “A luta é aqui. Preciso de munições, não de uma boleia” e “Estou aqui. Não vamos depor as armas e vamos defender o nosso país” são, certamente, frases que permanecerão na memória coletiva.