José Leandro: ‘Somos um país de navegadores não praticantes’

José Leandro é um homem que não tem medo de dizer aquilo que pensa e isso tem-lhe trazido alguns dissabores. Desde 1972 que anda no mundo da vela, e desde 2009 que é presidente da federação. Este ano leva menos atletas (5 ao todo) ao Rio de Janeiro do que há quatro anos, mas a…

José Leandro: ‘Somos um país de navegadores não praticantes’

O que se pode esperar da equipa de vela nestes Jogos Olímpicos (JO)? 

A vela portuguesa é sempre das modalidades de que se espera alguma coisa e por isso esperamos que aconteça algo de positivo. Não sei se será com medalhas ou se próximo disso, mas apesar das dificuldades nós esperamos sempre alguma coisa de bom.

Como tem a Federação olhado para todos os problemas que estão a afetar o Brasil?

A nossa preocupação tem a ver com as águas e os relatórios que temos recebido não são nada agradáveis. Além do problema das doenças, do vírus Zika, nós temos esse problema acrescido. Sabemos que continuam a não conter os detritos que vêm das favelas. Não é só a qualidade da água – temos as arcas frigoríficas e outras coisas a flutuar na baía. Estamos todos preocupados acreditamos que a organização dará algumas garantias de que tudo vai correr bem.

A partir do momento em que acabam uns JO, como se preparam os velejadores a uma distância de quatro anos dos seguintes?

A vela é um desporto complexo: são os elementos, são as embarcações, são as pessoas, e tudo isto tem de ter um enquadramento técnico psicológico. Na vela temos sempre dificuldades que esbarram com os atletas: o vento, o mar, o calor, o equipamento que se parte e tem de se repor, todos os timings. A vela é a única que encontra nos JO condições específicas. Não podemos treinar para os JO em Espanha. Se são no Brasil, temos de estar lá. E essa dificuldade faz com que que tenhamos de ter um programa de preparação muito rigoroso, o que, infelizmente, esbarra com a falta de sensibilidade das autoridades públicas para connosco. O processo do financiamento nunca acompanha as necessidades da preparação.

Isso acaba por ser contraditório. Nós temos uma costa tão conceituada e a vela parece não ser muito bem-amada…

Existe um pré-conceito com as questões do mar. Durante muitos anos as atividades náuticas foram sempre uma coisa estranha ao país. Dou um exemplo: em 2012 fui confrontado com uma situação em Weymouth [local onde ocorreu o torneio olímpico de vela] em que o presidente do Comité Olímpico e o presidente do desporto náutico me perguntaram: ‘Explique-nos lá bem essa coisa da vela’. Isto foi em 2012. Este pré-conceito é desmotivante e muito preocupante. É a modalidade com melhores resultados desportivos nos últimos 20 anos. Além disso, nós somos uma verdadeira fação náutica. Usamos o mar para navegá-lo, e essa vertente também tem sido ignorada pelo setor do mar do Estado. Formamos homens e massa crítica para o mar, ou seja, nós iniciamos a juventude para a experiência no mar com a navegação, e elas criam apetência, depois os clubes fazem a formação e o acompanhamento. Isto é o que se chama criar a cultura náutica, e tem sido muito pouco compreendido. Fala-se do desígnio do mar, e depois somos um país de navegadores não praticantes. 

Os anos 40/ 50 foram os anos de ouro, depois houve um período decadente e, nos anos 90, mais uma medalha, com a aposta nas camadas mais jovens. Como funciona hoje em dia a formação?

A vela nesse tempo tinha outro enquadramento. Havia uma organização que alimentava essa safra de gente que nos veio dar algumas alegrias, nomeadamente medalhas. Chamava-se Mocidade Portuguesa. Dizia-se muito que era um desporto de elite, e ainda hoje existe essa ideia. Pois bem, eu sou pobre e fiz vela, fui campeão, sei bem que há muita gente com posses que faz vela, como outros desportos. Esse trabalho de base que a Mocidade desenvolveu, eu ainda apanhei. Não tinham preconceitos desse tipo, tanto ricos como pobres podiam fazer. Depois essa organização foi extinta, como deveria ser naturalmente, porque estava ligada a um conceito de regime. Mas não foi substituída por nenhuma outra agenda, organização ou ideia que pudesse ter uma continuação na formação das pessoas na área das atividades náuticas. E por isso chegamos aos dias de hoje com um Instituto do Desporto e da Juventude (IPDJ) sem ideias, limitando-se a organizar a sua forma de gerir o desporto, de forma paternalista. Eles olham para o desporto e organizam-no como eles entendem, e não como deveria ser. O IPDJ tem uma forma horizontal de olhar para as modalidades e até estranha, porque desconhecemos a metodologia para distribuir o dinheiro. 

Isso nunca foi explicado? 

Não. E talvez não exista explicação. Não há diálogo, nunca um dirigente do IPDJ nos visitou, apesar de os convidarmos. Este distanciamento é inexplicável e tem resultado em muitas dificuldades para a nossa atividade. Esta situação tem muitos anos, talvez seja a forma de estar do funcionalismo público. Nunca fui funcionário público, e sinto que existe uma certa antipatia por parte do IPDJ, onde há uma retaliação contra opiniões que deveriam ser respeitadas. Por exemplo, tinha uma reunião marcada com o novo secretário de Estado e ainda estou à espera que aconteça. E com o anterior também.

Passou por diferentes governos e secretários de Estado. Como tem sido essa relação?

O desporto não é propriamente prioritário.

Assim como a cultura?

Acho que é pior. Porque existe um IPDJ, existe uma secretaria do Desporto, duas entidades com competências fortes mas depois percebemos que não tratam o desporto. Será que são necessárias estas duas? Será que precisamos de um IPDJ castrador e controlador? Estas dúvidas já as enviei ao novo secretário de Estado, mas parece que não é importante. Nós continuamos neste limbo de querer fazer as coisas. Não queremos mais dinheiro. Temos sempre muito menos financiamento do que qualquer outro. Para ter uma ideia, quando falo com alguns dirigentes do Estado, apresento-me sempre como cidadão nas reuniões, porque o dirigente desportivo nunca é respeitado. Eles tratam mal a seu bel-prazer. O IPDJ nunca aceitou a minha opinião, optam por dizer: ‘O senhor discorda mas leva e acabou’. Fiquei muito desiludido e desagradado com a forma como o Estado tem tratado o desporto em geral. E não é só a mim. Sofro mais na pele porque sou mais persistente na crítica. Se eu lhe disser isto nem vai acreditar. Imagine você que as federações recebem uma determinada verba que o IPDJ lá entende por mês, ou seja, uma mesada. Então temos uma mesada e se os JO são em agosto nós temos a preparação até julho. Do que é que me serve estar a receber em agosto, outubro e novembro se a minha preparação é até agosto?

Sempre foi assim?

Sim. Mais grave é chegar a março e até lá assina-se o programa específico de duodécimos, e depois continua para além disso. Não percebo por que há dois tipos de contrato. No nosso caso, e sei que noutras federações também é assim, nós assinámo-lo em abril e em maio não acontece nada, tal como em junho. Depois vem os velejadores reclamar porque não têm dinheiro. Então fazem outro contrato de programa e começam a pagar lá para o final de julho. Estivemos 3 meses sem financiamento da ‘mesada’. Como é que se prepara um atleta nestas condições? Temos de viajar com as pessoas e barcos, temos de ir treinar ao Rio e isso tem custos elevados.

O dinheiro não chega?

Não chega no tempo nem é suficiente. Desde 2011 que nos cortaram um terço do financiamento, que já era pouco. Nós temos de nos organizar à la longue. Temos atletas a preparem-se para os JO de Japão. E como recebemos mesadas nunca sabemos quando vamos receber para o ano seguinte, e se vamos receber. Nos últimos quatro anos reduziram-nos o financiamento para o enquadramento técnico em metade. Como é que alguém pode imaginar que esta federação esteja a trabalhar com os resultados que tem, e depois ainda tem de reduzir os funcionários para metade? Esse despedimento tem duas consequências: perdemos metade dos técnicos e temos de pagar indemnizações. Este governo já disse que tem uma agenda para o desporto, mas essa agenda nunca mais aparece. E o desporto não para.

Como se resolve este problema?

Acho que não é fácil, mas não é impossível. O Estado tem de decidir o que quer para o desporto e se as federações realmente contam. Quando fui eleito, fiz uma campanha complicada, andei pelo país, não foi fácil. Depois apresentei-me ao Estado e dizem-me lá que eu não mando nada, e que eles mandam em mim. Mas como eles também não percebem nada do desporto que eu dirijo, estamos conversados, não é? Não é fácil. Eu tenho uma ideia muito simples: repensar o IPDJ. Como cidadão, não aceito que haja um instituto público que seja paternalista, isso era à moda antiga. Só sei que quando comecei a criticar esta forma de estar do Estado, tive dificuldades. Uma das maneiras que eles tinham de nos acalmar era com inspeções.

Esse período entre 2010 e 2012, com a suspensão de verbas, foi o mais complicado?

O IPDJ mandava cá gente ‘ver coisas’, sem razão nenhuma. Se houvesse um processo de controlo às contas, isso seria louvável. Mas isto foi num período em que eu criticava a forma de atuar do IPDJ. Fui perseguido, essa é a palavra, e estamos no século XXI. Recebi telefonemas do IPDJ porque eu ‘ia para os jornais’. Vivi na Suíça, estive nos EUA, nunca imaginei alguma vez que pudessem pôr em causa o facto de eu exercer as minhas liberdades de cidadania. O que falta é alguma coisa que seja aglutinadora das federações.

Um ministério não resolve o assunto?

Depende das pessoas. Se não valorizarmos as federações, tudo o resto é irrelevante. Porque são elas que organizam e fazem acontecer o desporto. Ou então digam que não é, e façam eles. Nós não podemos estar tutelados porque sim. A tutela tem de facilitar a prática. Existe a lei base do desporto que diz que o Estado apoia o desporto e financia para facilitar o associativismo desportivo. A lei diz isso, mas o IPDJ faz ao contrário. Não facilita, complica. Repare que é o IPDJ é que impõe as regras ao próprio COP… [risos]

Consegue-me fazer um paralelismo do bolo orçamental com o de outras federações?

Nós somos a federação olímpica e não olímpica que menos recebe do Estado. Recebemos 600 e pouco mil euros anuais. Até 2011 eram 900 mil, que já era pouco. Por exemplo, desde 2005 que não recebíamos apoio para o equipamento técnico, ou seja, a preparação dos nossos atletas não tem a mesma oportunidade que das outras modalidades. Temos culpa de ter barcos? Não temos. Ou olhando para a gestão da nossa federação, que é complexa, nós recebemos cerca de oitenta mil euros, ou seja, somos a que menos recebe. Há federações que duplicam outras que recebem cinco vezes mais para essa gestão. 

Quantas pessoas trabalham aqui?

10, já fomos 24. Em 2004 para a preparação olímpica recebíamos mais 2/3 do que recebemos agora. Tudo isto é muito estranho. A nossa federação foi a que teve mais cortes, sendo a que mais necessita e a que tem melhores resultados. O senhor primeiro-ministro disse que aceita ideias para o próximo Orçamento de Estado. Podem começar por aí. O IPDJ, que é uma instituição de credibilidade duvidosa, já que há quatro anos forma descobertos aqueles 18 milhões de euros de gastos que ninguém sabe bem como, tem 500 funcionários, logo despende milhões de euros em custos e salários. Podem ser evitáveis. Cá está uma boa ideia para o senhor primeiro-ministro. 75 milhões recebe o IPDJ, só metade disso é que vai para as federações.

Vamos aligeirar a conversa agora. Quantos sócios tem?

[risos] Temos 100 sócios, 80 clubes, e cerca de 20 associações de classe. É o único desporto que tem uma associação de proprietários de barcos das classes. Foi nesse tipo de associação que nasceu a vela, porque foram os proprietários que faziam as regatas entre si.

E tem vindo a crescer o associativismo?

De alguma forma sim. O que é relevante, e para mim bem mais importante, não é só o crescimento do número de associados, mas sim o próprio crescimento dos associados. Os clubes lutam para sobreviver e para mostrar a sua valia. As guerras com as autarquias durante dezenas de anos fizeram com que os clubes tivessem poucos apoios ou, diria mais, pouca compreensão. Dirigentes competentes saíram, os clubes foram definhando. Uma das coisas que eu tenho tentado fazer é fortalecer a intervenção dos clubes. Tenho ‘vendido este peixe’ em muitas autarquias deste país e muitas ficaram sensibilizadas. Uma delas foi a de Viana do Castelo. No ano passado nomeámos o presidente da câmara como a personalidade do ano da vela. Porque a câmara assumiu as atividades náuticas como fundamentais. Todas as 1600 crianças do concelho fazem vela.

Como é que se faz vela em Viana do Castelo?

No clube de vela de Viana do Castelo. Com cerca de 1,6 milhões de euros criou-se uma estrutura-base. Houve até um representante da Alemanha que afirmou que não havia uma estrutura lá tão boa. A vela consegue com cerca de um milhão de euros criar infraestruturas de base para a sua prática, quando existem Centros de Alto Rendimento, que a vela não tem, que são mal usados e onde foram gastos muitos milhões de euros. Eu pedi apoio para várias iniciativas e nunca nos facultaram dinheiro. 

Que iniciativas é que a federação tem ao longo do ano?

Temos 350 regatas por ano, dá uma média de uma por dia. Em 2014 tivemos o campeonato do mundo da juventude em Tavira, a segunda prova mais importante do calendário da Federação Internacional de Vela, onde participaram 67 países com 400 velejadores. Foi a melhor organização de sempre, segundo a FIV. O IPDJ financiou em 8%. Aqui se verifica o preconceito. 

Diz-se que a vela é um desporto caro. Se um pai e uma mãe quiserem por o filho a praticar, quanto pode custar?

Não é caro, o IPDJ é que diz isso. É caro a partir de uma certa altura, como qualquer desporto. Quando se entra em competição no ténis, há sapatilhas que custam mais que um jogo de velas. Não há uma idade-tipo, obviamente que a partir dos seis, sete anos já se pode fazer vela. E pode-se fazer de borla ou com uma quota de 3 euros por mês se se dirigir a um clube. A maior parte dos clubes de Portugal dão acesso de borla ou com uma quota irrisória. 

Se eu quisesse começar hoje, podia?

Claro. Outros clubes sairão mais caros, mas isso faz parte do jogo. 

E quanto se gasta por ano?

Não tenho bem ideia de um valor porque quando eu me dirijo a um clube, eles põem os equipamentos à minha disposição. Às vezes temos de nos fazer sócios. Depois depende quando se atinge um certo nível. Eu, por exemplo, tive dificuldades nas provas de apuramento para Montreal, em 1976. O barco foi-me emprestado pela classe, um barco velho sem condições. Não tive hipótese nenhuma, fiquei em terceiro lugar. Mas hoje em dia as coisas não são tanto assim. Fazemos de tudo para que os atletas tenham o mínimo de condições para poderem estar nos JO.

Pode falar-me um pouco desses tempos em que participava nas competições?

A vela no meu tempo era encarada como uma atividade que, em primeiro lugar, formava homens. E hoje é difícil passar essa mensagem. Eu formei-me homem a fazer vela.

Quem o levou par a vela?

Amigos. Praticava aos fins de semana, e aos fins de tarde encontrávamo-nos nos clubes ou nos centros de vela. Discutíamos a meteorologia, a melhor tinta para pintar o casco, porque os barcos eram de madeira e as velas eram de algodão. Ainda sou desse tempo [risos]. Nos fins de tarde depois da escola íamos para lá.

E os seus pais não tinham medo que fugisse?

Eu fugi para a vela, é um facto. O mar suscitava algumas dúvidas em muitos pais. Depois o meu pai aceitou e as coisas correram bem. Todas as pessoas que fizeram vela no meu tempo, 99% delas são formadas com competências extraordinárias, porque foram criadas num ambiente muito especial.

E qual foi a regata mais longa que fez?

Barcelona. Nunca atravessei o Atlântico. Nos anos 60 havia um senhor que era o Eric Tabarly, e sonhávamos em fazer as voltas ao mundo como ele. Mas depois foi-se um pouco porque eu gosto de navegar mas não gosto de fazer muitas semanas de mar. É preciso ter uma certa postura mental que eu não tenho.

E ainda se mete nos barcos com os velejadores?

Sim. Fui campeão nacional em 2007 de cruzeiros, não foi assim há tanto tempo. Sou um competidor nato.

Isso nota-se…

Gosto de competir. Eu digo aos meus velejadores que, mais do que os resultados, aquilo que interessa é o que transmitem aos mais novos. Somos a única federação que tem um código de ética. Os resultados desportivos depois valem o que valem. Sabe, os secretários de Estado estão sempre alienados do desporto. Não é culpa deles, é assim a lógica. Tenho a sensação de que eles passam ali pelo currículo. Ser secretário de Estado é um castigo que alguém tem de passar de vez em quando para ir para outro lado qualquer. E o anterior, com quem tenho alguma intimidade, dizia que nunca exigiram resultados desportivos, e isso era mentira, o IPDJ lá avalia isso à maneira deles.

Se calhar o que falta ao IPDJ é irem num barco consigo.

Talvez, talvez. Ensinar-lhes o que é uma ‘cambadela’. Uma coisa assim.

Talvez não seja boa ideia…

Estou a brincar, mas felizmente não tenho estado de alma pessoal com ninguém. A minha empresa foi toda investigada, o meu nome devassado, o meu banco perseguiu-me sem razão. Coisas muito desagradáveis. Não estamos na Turquia ou na Venezuela. Devia ter criado ódios se calhar, mas não faz parte de mim. Têm é de me ouvir. Disso eu não vou abdicar.

O exemplo de homem formado na vela é o João Rodrigues?

Nem me fale do João Rodrigues. É o máximo de tudo. Não tem par como homem e como atleta. Apesar das dificuldades, ele nunca teve uma atitude menos simpática para com a Federação ou para comigo. Não tenho nada a dizer sobre a postura dele, tanto como pessoa como para atleta. Sempre deu o máximo, com ou sem condições.

Ele já disse que não pensa em medalhas…

Claro, ele é realista. Tem 44 anos. 

Quando é que o José vai para o Rio?

Dia 10, regresso a 16. A Sara Carmo já lá está. Os outros quatro vão amanhã. Espero que tenhamos uma medalha, era muito giro para a minha conversa. Dava jeito.