Artur. Do lado de lá de um traço de cal

Não sei se era daquela espécie de vento humano que Artur soprava. Ou se era das ondas douradas das melenas. Mas era diferente. Furiosamente diferente.

Foi em 1969. A memória não ajuda, mas foi em mil novecentos e sessenta e nove, assim mesmo, por extenso.

Nesse ano a Académica jogou no Funchal contra o Marítimo e eu estava lá, nos Barreiros, ainda pelado, terra batida, vermelha escura.

Pouco importa o dia, o mês. Pouco importa a razão porque lá estava. Era um miúdo e a Académica tinha o Gervásio, o Vítor Campos, o Mário Campos e, claro!, o Artur.

Artur Manuel Soares Correia: chamavam-lhe “O Ruço”.

A bola corria pelo lado direito e ele ia atrás. E atrás dele o cabelo louro em ondas, assim como uma espécie de rebeldia.

Nesse momento, havia um entusiasmo coletivo, uma catarse.

Não sei se era daquela espécie de vento humano que Artur soprava. Ou se era das ondas douradas das melenas. Mas era diferente. Furiosamente diferente.

O Artur não precisava das fintas nem dos golos. Houve quem dissesse que  era o melhor lateral direito da Europa, logo após a meia-final entre Benfica e Ajax para a Taça dos Campeões. Não sei se isso foi, para ele, motivo de orgulho. Provavelmente, nem ligou.

Mas eu falava da figura, plástica e irretocável.

Correndo sobre um traço de cal como se o campo não tivesse fim.

Onze anos após essa noite, no Funchal, Artur foi vítima do raio fulminante de uma trombose. Já tinha sido seis vezes campeão, de facto, e continuava a ser campeão na vida.

Em 1969 eu estava no Estádio dos Barreiros, no Funchal, vendo-o correr pelo lado direito. Em 1979, no Jamor, não correu muito: quase da linha do meio campo chutou uma bola endemoinhada, rasteira, que foi ganhando velocidade à medida que rebolava. No fim entrou na baliza da Noruega.

Artur nunca tinha marcado um golo pela Seleção Nacional. Nem voltou a marcar. Foi 34 vezes internacional.

Também estive lá. E vi.

A vida não poupou Artur Correia enquanto a foi vivendo. Há um ano, roubou-lhe a perna esquerda. Deixou-o aleijado, mas Artur vivia como se a perna continuasse lá, correndo pela margem, ali junto ao traço de cal que nos separa da morte.

Recusou-se a ser vítima e continuou à espera que metessem a bola na sua frente para se libertar das amarras que nos prendem, a todos nós, às vezes sem darmos por isso.

Em 1969, Portugal era a branco e preto e os homens vestiam de escuro.

A Académica também vestia de negro. Mas, de repente, pelo lado direito, havia o gesto que nos puxava a atenção como uma sombra dourada, fugindo às leis do cinzentismo, num grito de liberdade que todos em redor mantinham preso na garganta.

Não era, portanto, o golo: era a fuga. Era uma espécie de revolta, de ansiedade transbordada, a bola na frente, o cabelo atrás, a imagem perfeita da juventude que passa e não volta mais.

O Artur morreu. Corre já pela planície da eterna saudade.

Saltou para o outro lado do traço de cal.