Carlos Gaspar. “Os problemas da classe média não são as quotas raciais ou o casamento gay”

Bernie Sanders deu bons conselhos, diz Carlos Gaspar. Os partidos que não tocaram no tema da desigualdade estão agora em declínio.

Conversamos duas semanas depois da eleição de Donald Trump. Quando falámos pela primeira vez disse-me que estava “tudo demasiado em aberto no novo reino da incerteza”. Sente-se menos apreensivo hoje?

É, de facto, demasiado cedo para responder. Vai haver uma divisão entre otimistas e pessimistas. Os otimistas vão dizer que não se passa nada. Parafraseando o presidente Barack Obama, governar não é o mesmo que fazer campanha eleitoral. E não é. Por outro lado vão existir, mais na opinião pública e menos nos responsáveis políticos – que têm uma certa tendência para a cegueira -, os pessimistas, que entendem que esta eleição corresponde a um mandato forte para o retraimento dos EUA, uma rutura no consenso internacionalista global em nome do qual os Estados Unidos exercem responsabilidades muito importantes e que os obriga a fazer sacrifícios importantes. O presidente eleito não pertence a essa escola. Não faz e nunca fez parte dessa elite internacionalista liberal. Tem um mandato forte no sentido isolacionista, nacionalista – “a América em primeiro lugar”. Ele próprio se exprimiu assim no dia da sua eleição, quando fez uma intervenção mais contida, mais moderada, dizendo que o programa dele era a América, a América e a América, que a política internacional só existe em função dos interesses nacionais norte-americanos e que, no contexto desse mandato, é menos provável que os Estados Unidos queiram continuar a ter as mesmas responsabilidades internacionais, as mesmas políticas económicas e o mesmo espírito de sacrifício em nome da ordem internacional.

Esse é um tema do seu livro: os Estados Unidos como o poder unipolar no pós-Guerra Fria. A ideia de que o país indispensável acabou é exagerada? 

A unipolaridade e a nação indispensável não são a mesma coisa. Os Estados Unidos, com este presidente, vão provavelmente tentar fortalecer as suas capacidades e vantagens estratégicas militares, que já são muito consideráveis. Isso faz, de facto, parte do programa nacionalista. E vão tentar desenvolver novas capacidades e dar um novo impulso à modernização da sua economia. Não se trata apenas de reconstruir o interior das cidades e reconstruir as infraestruturas norte-americanas, também se trata de modernizar, criar uma nova rede de distribuição de energia, criar novas valências, novos métodos na preparação de uma viragem tecnológica que se está a aproximar. Por todas estas razões, este presidente pode reforçar a preponderância da posição dos Estados Unidos como a principal potência internacional, mas isso não quer dizer que esta administração, este presidente e esta maioria eleitoral estejam dispostos a fazer os sacrifícios que são necessários para garantir a estabilidade da ordem internacional. Outra coisa é a nação indispensável. 

A mesma que interveio nos Balcãs, a mesma…

… que garantiu a longa paz na Guerra Fria, que garantiu a mobilização de recursos excecionais para conter a União Soviética no fim da ii Guerra Mundial. O presidente Roosevelt, em 1945, em Ialta, anuncia a Estaline e Churchill que, no fim da guerra europeia, os soldados americanos regressariam a casa. Ainda lá estão. Na Alemanha e no centro da Europa chegaram a estar 300 mil soldados norte-americanos. Isso é, naturalmente, um investimento importante na defesa do primado norte-americano, mas também é um sacrifício que garante, neste caso às democracias europeias, a paz e a tranquilidade nas quais foi possível de-senvolver a integração europeia, a economia europeia, e fazer a Europa renascer da destruição total da ii Guerra. 

Construa ou não o muro, comece ou não uma guerra comercial com a China, Trump provocará o retraimento.

Aquilo que nós não podemos fazer é ignorar que o presidente eleito tem uma posição de distanciamento em relação à ordem internacional. Pôs em causa as garantias de segurança estratégica que os Estados Unidos, desde o fim da ii Guerra Mundial, asseguram às democracias europeias e asiáticas na NATO. Pôs essas garantias em causa e elas perderam credibilidade pelo simples facto de o presidente eleito as ter posto em causa. Não podemos ignorar que ele declarou a sua intenção, mesmo na sua versão mais moderada, de rever os acordos da NAFTA e rever os acordos da parceria do Pacífico. Não podemos ignorar isso como se nada fosse. O presidente Obama e a chanceler Merkel escreveram um artigo para a imprensa alemã dizendo que nada disso existe. Escrevem um artigo sobre o futuro das relações transatlânticas como se o presidente eleito fosse Hillary Clinton. Mas não é. A eleição de Trump é uma espécie de terramoto cuja intensidade nós ainda não sabemos medir com precisão. Pode ter sido, como diz Robert Kagan, o fim da nação indispensável. Ou pode estar apenas atordoada. Mas não vai ser a mesma coisa e mesmo os mais otimistas reconhecem que algumas coisas vão mudar. 

Aceita-se agora que a globalização tenha estado na origem de Trump e de outros movimentos populistas europeus. O caldeirão de motivos inclui habitualmente a desigualdade económica, a evolução tecnológica, a rápida mudança demográfica e a evolução social, seja com o casamento homossexual ou com o feminismo, por exemplo. 

É um grande caldeirão (risos).

Exato. Mas o que Merkel e Obama dizem é que é impossível voltarmos atrás na globalização.

Dizem que não é possível voltar a uma economia pré-globalização. É a opinião deles. Já houve uma economia pré-globalização e uma destruição dos instrumentos de regulação multilaterais da economia internacional que foi feita pelo presidente Roosevelt, nos anos 30, quando teve de concentrar todos os seus recursos no New Deal. Fê-lo voltando costas aos mecanismos de regulação internacional. E durante os anos 30, o que tivemos foram grandes blocos regionais – os Estados Unidos, a Alemanha e o Japão – que competiam entre si com os resultados que se conhecem. Os resultados não têm de ser os mesmos, mas existiu uma economia pré-globalização que se seguiu a uma economia globalizada. 

Não é mais ou menos isso que Trump está a tentar fazer?

É isso que está no seu programa, tanto quanto o conhecemos. E as afinidades com o programa do New Deal do presidente Roosevelt podem não ser apenas na dimensão interna: a reconstrução das cidades e a modernização das estruturas são grandes programas keynesianos. A outra parte do New Deal é desmantelar as instituições multilaterais que até 1933 regulavam a economia globalizada do seu tempo. Portanto, há ciclos. Não se trata de regressar à economia que existia antes deste ciclo de globalização, mas há uma alternativa à globalização, que é a regionalização e o protecionismo dos blocos regionais. Obama e Merkel têm a sua opinião. É o combate que eles vão travar contra o presidente eleito. O artigo do presidente americano e da chanceler alemã é um manifesto anti-Trump. Pode ser um artigo lido desta maneira, que representa a posição dos pessimistas, que querem travar aquilo que entendem que é o programa desta nova direita reacionária, protecionista e nacionalista. É isso que está em cima da mesa.

É essa também a nova direita europeia?

O partido antiglobalização é várias coisas e é tudo menos homogéneo. Há alguns traços que são paralelos e que devem ser vincados entre os Estados Unidos e os países da Europa ocidental, alguns traços que são comuns e que podem ser sublinhados, e outros que são diferentes. Os que são diferentes têm que ver, em primeiro lugar, com a questão demográfica. Os Estados Unidos não estão em crise demográfica. Os Estados Unidos, com a Índia, são a única grande potência que está a crescer demograficamente e que não tem um desequilíbrio extremo entre a primeira geração e a terceira geração. Pelo contrário, a Europa ocidental, o Japão e a China têm esse desequilíbrio na pirâmide demográfica que faz antever uma crise inegável no Estado social. 

Estamos a falar de natalidade. Existe também o debate sobre um tecido racial em mudança.

Estamos a falar da importação maciça de imigrantes. Os Estados Unidos têm uma grande capacidade de integração de imigrantes, ao contrário da Alemanha ou mesmo da França e da Inglaterra. Os Estados Unidos são também uma nação de imigrantes. São uma nação comandada, edificada e inventada por uma elite anglo-saxónica, mas são uma nação de imigrantes. Isso não é verdade nos velhos estados ocidentais, embora tanto uns como outros tenham de responder a uma pressão demográfica extrema, conjuntural, muito forte: no caso da Europa ocidental, as vagas de refugiados que vêm dos conflitos da Síria, do Iémen, da Eritreia, do Afeganistão e da Líbia; no caso dos Estados Unidos há uma pressão ainda maior na fronteira com o México, por parte dos imigrantes que vêm da América Central e da América do Sul. Nós estamos excessivamente concentrados nos nossos problemas para vermos os números americanos sobre a pressão migratória: é maior em termos relativos e absolutos do que na Europa, e nos Estados Unidos são 300 milhões, e nós somos mais de 500 milhões. E isso explica por que razão é que nestes partidos antiglobalização, sobretudo na ala reacionária dos partidos antiglobalização, há este tema comum. Não é a mesma imigração, mas são pressões equivalentes nas fronteiras sul. Os partidos reacionários dão como resposta política a exclusão, a expulsão, a filtragem, a criação de muros, o que seja. Isso é comum, embora num contexto diferente, porque é diferente ter uma pressão migratória em países cuja natalidade está em declínio e em países cuja natalidade não está em declínio. Há uma segunda diferença importante que tem que ver com a soberania. Os Estados Unidos não são apenas a grande potência internacional, são um Estado soberano. E no caso da Europa, um tema comum aos partidos populistas de esquerda e de direita é o problema da soberania dos Estados e da integração europeia. Isto é uma distinção radical porque a direita reacionária nos Estados Unidos é pró-americana e a direita reacionária nos países da Europa ocidental é antieuropeia e a favor da restauração – possível e impossível – da soberania nos seus Estados. O Brexit é isso, evidentemente, mas também a Frente Nacional em França, ou o Movimento 5 Estrelas em Itália e os outros partidos de oposição de direita italianos, ou a Alternativa para a Alemanha no caso da República Federal. Há um tema comum que nos Estados Unidos não existe, mas uma direita antiglobalização. De certa maneira é simétrico, mas corresponde a uma diferença importante. 

Mas existe um tronco comum, certo? 

Existem problemas comuns para os quais há respostas paralelas e, de certa maneira, assumidamente convergentes. Em primeiro lugar, o problema da estagnação dos rendimentos das classes médias. É um problema que os Estados Unidos e os países da Europa ocidental partilham entre si e que contrasta com os países da Ásia, onde os rendimentos das classes médias tiveram um crescimento exponencial nos últimos 25 anos. Isso significa que há, no caso dos países ocidentais, uma proletarização de partes das classes médias que perdem esperança e expetativas para o futuro. São essas classes médias que se estão a mobilizar contra a globalização. Nalguns casos também contra a imigração e, à esquerda e à direita, contra as elites, que, durante o período da globalização, tiveram um crescimento exponencial dos seus rendimentos. Uns 1% descritos por Thomas Pikkety tiveram um crescimento considerável dos seus rendimentos, por oposição ao grosso das classes médias, que está numa posição de forte estagnação.

Esse nem sempre é um argumento perfeitamente articulado.

Mas a realidade está lá. Há muitas maneiras de o referir. Podemos referi-lo com base no desemprego estrutural que, no caso da França, é muito maior do que o dos Estados Unidos. Pode-se referir, à esquerda, como a falta de esperança, a falta de horizontes. Há várias maneiras de culpar o outro. 

O outro-imigrante, o outro-refugiado?

As elites em geral, à esquerda e à direita. Os imigrantes, no caso dos partidos populistas de direita – não à esquerda, que não tem esse traço de racismo. Mas há uma posição comum a partir de uma realidade comum, que é a estagnação dos rendimentos, a insegurança de uma parte importante das classes médias, que tem a ver, por um lado, com a competição entre os países ocidentais e os países emergentes, e, por outro, tem a ver com a modernização tecnológica, que está mais avançada nos países ocidentais do que nos países asiáticos. Há um traço comum que não foi muito referido, mas que foi mencionado de uma maneira muito enfática na campanha eleitoral norte-americana por Bernie Sanders. Sanders criticou muito a fixação das elites democratas – e nós podemos dizer a mesma coisa em relação a uma grande parte das elites tradicionais na Europa ocidental – nos temas do género, da integração racial, das quotas, do casamento gay, da adoção, etc. O Bernie Sanders, um tipo de esquerda, um socialista até, o que é uma raridade no Partido Democrata americano, disse, e estou a citar, que os “americanos estão fartos de ouvir falar do que se passa nas casas de banho dos liberais”. A frase é um pouco rude, mas é uma frase de um populista de esquerda, dos Estados Unidos, dizendo à sua rival, Hillary Clinton, que o Partido Democrata, à cabeça, tem de olhar para os problemas reais das classes médias. E esses não são problemas de quotas raciais, não é o problema do casamento gay e não é o problema de saber se casais homossexuais podem ou não adotar crianças. Esses problemas, que ocupam uma parte desproporcional da agenda política tradicional nos Estados Unidos e nos países da Europa ocidental, não dizem nada à maioria dos eleitores e não dizem nada a estas classes médias, cujos problemas são muito mais diretos do que essas questões de género ou do que seja.

Independentemente da forma como estivermos a vestir os argumentos, a base é uma questão económica?

Há, na retaguarda, uma questão económica. E na primeira linha, uma desfocagem da agenda política. A maioria da população e a maioria dos eleitores dos Estados Unidos são brancos. E se ouvirmos os discursos eleitorais do Partido Democrata, ficamos com a impressão de que os brancos já são uma minoria. Não são. Podemos assumir também que a maioria dos eleitores americanos não são homossexuais mas, se ouvirmos o discurso político dos democratas na última campanha, ficamos com a impressão de que essa é uma questão muito importante para a maioria dos eleitores. Não é! Há aqui uma desfocagem, uma deformação, uma espécie de discurso de elite que é transposto para uma campanha de massas. Mas a maioria dos eleitores nos Estados Unidos, como nos países da Europa ocidental, não estão interessados nesses temas fraturantes, como se diz na linguagem política europeia. Ou nos problemas das casas de banho dos liberais, na linguagem mais rude de Bernie Sanders. 

Ou seja: os partidos tradicionais europeus não prestaram atenção que baste à desigualdade.

E estão todos em declínio. Há o caso extremo na Grécia, em que os dois partidos que somavam antes 80% do eleitorado estão reduzidos a 20%. Em Espanha somavam também 80% década após década, e agora têm à justa uma maioria nas Cortes. Mesmo na Alemanha, a grande coligação entre os democratas-cristãos e os sociais-democratas já não é uma grande coligação. A CDU continua a ser um grande partido, mas o partido social- -democrata está abaixo dos 30%. E isso é uma tendência. Na França, o primeiro partido é a Frente Nacional, à frente dos socialistas e mesmo à frente do partido republicano gaullista. Há um declínio geral nos partidos tradicionais que só não existe também nos Estados Unidos porque o Partido Republicano ficou refém de um presidente populista. 

Qual é o seu cenário pessimista para a Europa? Le Pen está nas cartas?

Não. Marine Le Pen tem uma situação já de si extraordinária, que é passar garantidamente à segunda volta. Mas passa garantidamente para perder. Já é suficientemente mau que ela passe à segunda volta. É um sinal da crise e do declínio da França e do projeto europeu. É uma vergonha, é uma nódoa para o espírito republicano em França e para a ordem liberal europeia. Mas não está nas cartas – eu sei que as sondagens estão todas erradas (risos). Mas o que está em causa nas eleições francesas não é uma situação equivalente ao Brexit e muito menos comparada com o que se passou nos Estados Unidos. A Marine Le Pen anuncia o fim da União Europeia, o fim da moeda única e um terço dos eleitores franceses estão suficientemente desesperados ou ideologicamente mobilizados por uma velha tradição racista, que também existe na direita reacionária francesa, para votarem em Le Pen. Mas não é mais do que isso. Qualquer candidato conservador minimamente sólido garante o pleno dos votos republicanos contra Marine Le Pen. 

A UE sobreviverá a um ou dois mandatos de Donald Trump?

Não é por causa de Trump que a União Europeia pode estar em causa. Ela pode estar em causa se não conseguir responder às mudanças que resultam dessa introversão norte-americana e se, paralelamente, não conseguir encontrar um modo de manter o Reino Unido num concerto europeu, apesar do Brexit. Essa é uma questão mais diretamente importante para a continuidade do modelo de integração que representa a UE do que propriamente os resultados da eleição norte-americana. Os resultados da eleição, designadamente a lógica regionalista, podem ser uma boa oportunidade para fortalecer a União Europeia como o guardião de um bloco regional. E tenho a certeza que na Alemanha há quem esteja a pensar nesses termos. A UE é uma união regional e pode garantir essa proteção do espaço europeu numa lógica protecionista. 

Trump pode ser uma oportunidade?

Estou só a dizer que não é necessariamente um desastre para o modelo de integração europeu, que tem uma forte componente regionalista e que se pode adaptar, que tem os mecanismos decisórios e institucionais necessários para responder a uma viragem protecionista norte-americana, adaptando as políticas económicas europeias. 

Escreve que, ao contrário do Médio Oriente, a Ásia está orientada para o crescimento da democracia. Prevê mudanças na Rússia e China?

Não me parece que a Rússia esteja numa fase de mudança do seu regime político. A questão da China é mais importante na presente conjuntura do que a evolução da política na Rússia no sentido em que, se houvesse uma transição democrática pacífica na China, a balança ideológica internacional mas também a balança da estratégia internacional mudavam radicalmente. A relação entre os Estados Unidos e a China mudaria radicalmente. Os amadores de geopolítica dizem que os regimes políticos não têm importância nenhuma e que é indiferente os regimes serem autoritários ou democráticos: os Estados relacionam-se entre si e têm interesses permanentes. E as pessoas perguntam: então o que foi a Guerra Fria? A balança ideológica existe e uma transformação política pacífica na China não é apenas importante em si mesma, é um fator de mudança na política internacional muito mais importante do que qualquer mudança nos EUA.

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