Jornalista, socióloga, investigadora, escritora, feminista. Mas sobretudo mulher. Uma mulher que foi tantas outras, que foi por tantas outras. Maria Isabel Barreno morreu no dia 3 de setembro, aos 77 anos. Uma «voz ativa», cuja «riqueza do seu pensamento e o rigor dos seus princípios em muito contribuíram para termos hoje uma sociedade mais justa, livre e igualitária», sublinhou o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, numa nota de pesar. Já a escritora e companheira de luta, Maria Teresa Horta, destacou a inteligência de Maria Isabel Barreno, mas sobretudo a amizade de alguém que via como «uma irmã».
Foi com apenas seis anos, e na sequência de uma doença, que Maria Isabel Barreno descobriu a leitura e depois a escrita, que se viriam a revelar portos seguros para uma mulher que tinha coisas para dizer. Mas que não o podia fazer. O Portugal cinzento onde nasceu, em 1939, um país onde as mulheres ainda precisavam de autorizações escritas dos maridos para sair do país ou para comprar um carro, não lhe permitia essa veleidade de ser mulher, de ser feminista, de ser livre. Talvez por isto, disse sempre que o 25 de Abril foi o acontecimento mais importante da sua vida.
Foi, de resto, apenas depois da revolução dos cravos que Maria Isabel Barreno viu chegar ao fim o processo de 1972 conhecido como o Caso das Três Marias, no qual Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta, foram acusadas pelo Estado Novo de terem escrito um livro pornográfico e que atentava contra a moral pública e os bons costumes. «Quando escrevemos as Novas Cartas Portuguesas, sabíamos que a obra em si já era uma ousadia, independentemente do vocabulário que viéssemos a usar – mas era o que nos interessava escrever naquela altura e por isso fomos para diante», recordou ao Público em 2009. «Nunca pensei que o regime – até porque estávamos em pleno marcelismo e havia a ideia de que a abertura era outra – caísse na asneira de nos levar a tribunal. O destino mais comum dos livros era serem apreendidos, e até havia livrarias especializadas em livros proibidos, ninguém imaginava que o regime voltasse a cometer o erro que tinha cometido anos antes com a Natália Correia», acrescentou, em referência à condenação a três anos de prisão, com pena suspensa, de Natália Correia, pela publicação da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, em 1966.
Novas Cartas Portuguesas, livro proibido pelo regime, foi editado em 1971, de forma anónima, e assentava nas cartas da freira portuguesa Mariana Alcoforado. Um livro surpreendente, não apenas na escrita, partilhada, mas sobretudo na forma como afirmava a mulher, justamente como mulher, com as suas ânsias e desejos, libertadora da condição submissa, recusando a superioridade masculina, a violência doméstica e a censura.
Depois de dois anos de julgamento – que foi acompanhado de perto pela imprensa internacional –, a 7 de maio de 1974, as três Marias foram finalmente absolvidas. Na fundamentação da decisão do juiz, podia ler-se: «O livro Novas Cartas Portuguesas não é pornográfico nem imoral. Pelo contrário: é uma obra de arte, de elevado nível, na sequência de outras obras de arte que as autoras já produziram».
Ao longo da sua vida, Maria Isabel Barreno defendeu sempre que foram as Novas Cartas Portuguesas, e toda a polémica em torno desta obra, que levou a que a Constituição da República de 1976 consagrasse a «igualdade absoluta de direitos para homens e mulheres».
Mas Maria Isabel Barreno nunca se esgotou nas Novas Cartas Portuguesas. Licenciada em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, trabalhou no Instituto Nacional de Investigação Industrial, foi jornalista e Conselheira Cultural para o Ensino do Português em França.
A luta pelos direitos, sobretudo pelos direitos femininos, que lhe marcou a vida, marcou-lhe também a escrita. Escreveu poesia – que nunca publicou –, contos e romances, bem como trabalhos de investigação sociológica. Em todos, num total de mais de duas dezenas de títulos públicos, uma voz inconformada esteve sempre presente, e valeu-lhe diversas distinções, como o prémio Fernando Namora, pelo romance Crónica do Tempo, de 1991, e a distinção, em 2004, como Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.
O seu último romance foi publicado em 2009. Vozes do Vento viaja até à história dos antepassados do seu pai, em Cabo Verde. Antes, Maria Isabel Barreno havia estado 15 anos sem publicar livros, abraçando as artes plásticas, sobretudo o desenho e a tapeçaria.