Refugiados olímpicos

Dez refugiados foram escolhidos pelo Comité Olímpico Internacional para formar uma equipa inédita que pretende alertar para um fenómeno que afeta mais de 60 milhões de pessoas. Chegam ao Rio sem bandeira e sem hino mas determinados a enviar uma mensagem de esperança a todos os que partilham o seu drama.

Da sua terra natal, Paulo Amotun Lokoro recorda a tarefa de guardar um rebanho de cabras nas longas planícies do Sudão, até que o conflito que iria originar o país mais novo do mundo – o Sudão do Sul – levou os pais a enviá-lo para o Quénia. Popole Misenga lembra-se do dia em que a violência étnica fez com que não voltasse a ver a família que tinha em Kisingani, na República Democrática do Congo. E dos oito dias que passou perdido na floresta até ser resgatado e transportado para a capital Kinshasa. As memórias da síria Yusra Mardini são muito mais vívidas, porque são recentes: há menos de um ano ajudou, juntamente com a irmã, a puxar o pequeno barco que ameaçava virar-se no mediterrâneo a poucos metros da tão desejada Grécia.

Os três fazem parte da equipa de Atletas Olímpicos Refugiados (AOR), uma novidade nos Jogos do Rio de Janeiro que surge como resposta do Comité Olímpico Internacional (COI) à existência de mais de 60 milhões de refugiados em todo o mundo. “Estes refugiados não têm casa, não têm equipa, não têm bandeira nem hino nacional. Oferecemos-lhe uma casa na Aldeia Olímpica ao lado de atletas de todo o mundo. O hino olímpico será tocado em sua honra e a bandeira olímpica entrará com eles no estádio”, disse o presidente do COI, Thomas Bach, ao anunciar, no dia 3, a seleção de 10 atletas do grupo de 43 que inicialmente foi identificado pelos comités olímpicos dos países de acolhimento.

Bach acredita que eles “mostrarão ao mundo” que “qualquer pessoa pode contribuir para a sociedade através do seu talento e da força de espírito” apesar “das tragédias inimagináveis que enfrentaram”. Porque para além das capacidades atléticas, os seis homens e quatro mulheres da AOR foram selecionados também pelas suas experiências pessoais.

Popole Misenga foi acolhido num centro de Kinshasa para crianças órfãs. E foi lá que encontrou no desporto uma espécie de substituto para o vazio que se criara na sua vida: “Quando és uma criança precisas de uma família para te instruir sobre o que fazer. Eu não tive isso. O judo ajudou a dar-me serenidade, disciplina, comprometimento – tudo”, disse à Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), empenhada em divulgar uma iniciativa que o alto comissário Filippo Grandi considera um “tributo à coragem e perseverança dos refugiados”.

A disciplina tornou Misenga um atleta de alto nível, ao ponto de em 2013 ser selecionado pelo seu país para os mundiais da modalidade, disputados precisamente no Rio. A experiência não foi a melhor pois o jovem então com 21 anos lembra-se de ter ido com fome para o único combate que realizou – e perdeu. “No meu país não tinha casa nem família e a guerra causava demasiadas mortes e confusões. Decidi ficar no Brasil para melhorar a minha vida”, conta.

Conseguiu o estatuto de refugiado e foi o comité olímpico brasileiro que o recomendou para a AOR. “Quero dar esperança a todos os refugiados e tirar-lhes a tristeza”, diz ao antecipar a sua participação.

Ajudar parceiros refugiados é coisa que Yusra Mardini, 18 anos, fez antes de chegar ao Brasil – mais do que a tristeza tirou-os de uma situação de drama iminente. A travessia da Turquia para a Grécia foi feita com mais 20 pessoas num barco que não devia levar mais de sete. E como em tantas outras histórias semelhantes, a física não perdoou. “Havia alguns que não sabiam nadar, não podia ficar parada a queixar-me de que íamos afundar. Era uma vergonha porque sou uma nadadora”.

Saltou para a água e, sem recorrer à mariposa que nos mostrará no Rio, puxou a embarcação nos últimos metros da viagem. Já na Grécia, recorreram a traficantes de pessoas para seguir caminho rumo ao Norte da Europa – tal como a maioria dos que fizeram essa rota nos últimos dois anos, acabaram na Alemanha.

Algo que o compatriota Rami Anis não tinha nos planos quando decidiu fugir da guerra civil que se trava na Síria desde 2011. Os bombardeamentos e a escalada de violência em Alepo, sua cidade natal, obrigaram à fuga mas a vizinha Turquia, onde já vivia um irmão mais velho, seria o destino final da viagem.

Apesar de pensar que “ficaria apenas uns meses e depois regressava” à Síria, para não perder a forma conseguiu inscrever-se na natação de um dos mais prestigiados clubes turcos, o Galatasaray de Istambul. O problema passou a ser não conseguir mostrar a forma a ninguém, pois por não ter nacionalidade turca não podia entrar em competições – “é como alguém passar a vida a estudar e não conseguir inscrever-se para o exame”, conta ao recordar o sentimento que o levou a arriscar mais.

E arriscar mais, para um Sírio refugiado na Turquia, normalmente significa tentar a passagem para a Grécia, ou para umas das múltiplas ilhas que o país tem espalhadas no Mediterrâneo. No caso de Rami, o destino final da viagem feita em barco insuflável foi a ilha de Samos. Depois seguiu a rota de outros milhões e o seu destino final foi Gante, na Bélgica. Tal como sucedera em Istambul, foi recebido de braços abertos no Clube Real de Natação da cidade, onde ajudado pelo treinador Verbauwen conseguiu alcançar os mínimos e ser indicado pelo comité olímpico local para a equipa da AOR.”Com a energia que tenho, estou certo de que alcançarei bons resultados, será uma sensação incrível fazer parte das olimpíadas”.

A ajuda dos que os acolheram é parte vital para aqueles que conseguiram cumprir o sonho de competir na Olimpíadas. Para Paulo Amotun Lokoro ela surgiu na forma de uma tricampeã mundial de meia maratona, a queniana Tegla Loroupe.

Mais de metade dos 43 candidatos iniciais à AOR tinham como residência o campo de refugiados de Kakuma, no Quénia, onde se encontram mais de 180 mil pessoas. Um local onde 160 equipas de futebol disputam campeonatos internos, que impressionou o diretor do programa solidário do COI: “Fiquei tocado pela forma como vivem neste campo. É no meio do nada, não têm nada para fazer e a única atividade que os mantém motivados é o desporto”, contou Pere Miro ao Guardian.

Lokoro foi um dos escolhidos por Loroupe. “Quando cheguei nem ténis tinha. Agora treinamos sem parar até nos sentirmos a um nível bom e sabemos como ser atletas de verdade”, diz o jovem de 24 anos que continua longe da família que ficou no Sudão do Sul. “Estão tão feliz, vou conhecer tanta gente”, diz antes de lembrar outro ponto alto da sua participação olímpica: “A minha família vai ver-me na televisão, no Facebook”.

Também resgatado por Loroupe em Kakuma foi Yiech Pur Biel. Um jovem que começou pelos torneios de futebol do campo de refugiados mas, como relatou o ACNUR, “acabou frustrado por depender de companheiros de equipa – foi a correr que sentiu ter controlo sobre o seu destino”. Antes de seguir para Nairobi com a campeã mundial, Biel treinava em Kakuma, onde “nem o clima ajuda, pois de manhã à noite está sol e calor”.

Apostado em mudar de vida pela via do desporto, centrou-se nas motivações pessoais: ”Foquei-me no meu Sudão do Sul porque somos nós, os jovens, que podemos mudá-lo. E foquei-me nos meus pais, porque preciso de mudar a vida que eles levam”.

O olímpico Biel já cumpriu o seu objetivo, que passa por “mostrar aos companheiros refugiados que é possível ter esperança. Através da educação, mas também a correr, podemos mudar o mundo”. A judoca congolesa Yolande Mabika ainda o tem por alcançar, pois vê na conquista de uma medalha a “oportunidade de mudar de vida”.

Mas o sucesso desportivo é o que menos importa para os atletas da AOR, até porque já receberam a garantia de que continuarão a ser apoiados pelo COI após o final dos Jogos. A mais brilhante de todas as medalhas já não escapa a nenhum dos dez heróis que, como diz Thomas Bach, “enviam um sinal à comunidade internacional de que os refugiados são humanos como nós e enriquecem qualquer sociedade”.