‘A sardinha portuguesa era exportada para todo o império romano’

Hoje não passa de uma ruína. Ainda assim, o teatro romano é o edifício da antiga Olisipo que melhor conhecemos. Lídia Fernandes, diretora do Museu do Teatro Romano e autora de Viagem ao Passado Romano na Lusitânia, decifra estas pedras e explica o que nos ensinam sobre a cidade romana que jaz debaixo de Lisboa.

‘A sardinha portuguesa era exportada para todo o império romano’

No coração de Lisboa, entre a R. da Saudade e a R. de S. Mamede, uma espécie de barracão esconde uma cratera onde se veem enormes pedregulhos. Percebe-se que já formaram uma construção, mas é difícil dizer de que tipo. Trata-se dos vestígios de um antigo teatro, o mais importante edifício romano que sobreviveu da velha Olisipo. 

O que está à vista corresponde a cerca de um terço da construção e encontra-se muito depauperado: «A quantidade enorme de pedras talhadas que existia aqui foi aproveitada para reconstruir a cidade depois do terramoto de 1755», explica Lídia Fernandes, diretora do museu do Teatro Romano. «E esse não foi o único. Desde a época romana que estão registados terramotos no território nacional».

Branco, moderno e luminoso, o interior do Museu contrasta com as ruínas do teatro. O espaço ocupa vários edifícios, entre eles o de uma fábrica de malas da primeira metade do século XX, e atravessa mais de 2700 anos de História, desde o século VIII a.C., data dos primeiros vestígios encontrados no local, até à atualidade.

A conversa com a diretora, que acaba de editar Viagem ao Passado Romano na Lusitânia (ed. Esfera dos Livros), decorre na parte do museu que corresponde ao balcão sobre o Tejo para onde, há dois mil anos, «as pessoas iam socializar antes de começar a representação».

Aprendi que os gregos é que aproveitavam as encostas para construírem as bancadas. Os romanos não costumavam fazer teatros com estruturas auto-sustentadas?

Os três grandes teatros de Roma – o de Pompeu, o de Marcelo e o de Balbo – todos eles têm essa estrutura artificial. Aqui, o volume é muito orgânico em relação à colina, mas não é caso único. O teatro romano de Medellin, uma vila lindíssima que fica a cerca de 30 km de Mérida, também está construído numa encosta, ocupando uma posição muito semelhante à do teatro de Olisipo.

Aproveitaram a colina por ser mais fácil construir assim?

Não. O principal objetivo era o teatro ficar virado a sul e aproveitá-lo como marca propagandística do Império Romano. Quem chegava pelo rio à cidade de Felicitas Iulia Olisipo, a primeira construção que via seria este volume enorme do teatro e estes terraços onde nos encontramos. Sabemos que o sistema de engenharia implementado foram grandes muros paralelos entre si que iam segurando o edifício e suportando a própria colina, porque toda ela é feita com argilas e muito complicada de aguentar.

E o que vemos do outro lado da rua seria o quê?

Seria a parte central do teatro. Vê-se um pouco da zona de orquestra, um espaço semicircular onde se sentava a elite citadina, e vê-se uma das entradas máximas do teatro.

Aquela cobertura que protege as ruínas tem um ar provisório… É para ficar?

Isso é uma coisa por que eu estou a ansiar há muito tempo. Aquela cobertura foi construída em 2001 cumpre a função para a qual foi colocada, que é proteger as ruínas. As ruínas não podem estar a céu aberto, durariam um ano ou dois, porque o calcário das pedras é muito friável. A grande aposta vai ser criar uma estrutura que una todas estas ruínas, quer as que estão na rua, quer as que estão dentro do museu, uma estrutura que seja um ícone do teatro romano e que seja contemporânea. E que funcione bem, porque aquela que cá está é feia mas funciona, não deixa entrar água.

E os tapumes com graffitis?

Aquele tapume era um pesadelo. As latas de tintas que eu comprava para o pintar eram uma renda… Daí termos convidado um graffiter, o Gonçalo Mar, para pintar aquele tapume. E desde que foi pintado, há mais de um ano, tem uns rabiscos pequeninos mas mantém-se muito bem. Recentemente pusemos mais uns pregos para se aguentar, exatamente porque não queríamos investir muito numa coisa que sabíamos que era provisória.

Hoje estamos mesmo no coração da cidade. Na altura o teatro estaria também no centro ou numa zona mais periférica?

Estava no centro da cidade. Infelizmente não conhecemos muito sobre a cidade romana de Olisipo, embora nos últimos 10-15 anos a informação que tiramos do subsolo tenha aumentado exponencialmente, graças à lei em vigor, que obriga a uma escavação prévia às intervenções de engenharia. Mas é um puzzle que está a ser construído muito pouco a pouco e o edifício que melhor se conhece é precisamente o teatro romano.

Por este teatro o que podemos concluir acerca da dimensão da cidade? Era a mais importante em território português ou nem por isso?

Não era a capital, mas tinha um papel muito importante, que era funcionar como porto da capital da província da Lusitânia. Augusta Emerita [atual Mérida], a capital, foi criada numa zona de nenhures. Tinha rio mas não tinha um porto que permitisse acesso ao mar.

Porquê fazer uma cidade no meio do nada?

As legiões que tinham combatido os cântabros, os astures, os povos mais aguerridos do Norte da Península Ibérica, receberam esses terrenos como recompensa pelos feitos das batalhas. Atualmente pensa-se que se estas legiões fossem todas elas levadas para Roma decerto eclodiriam muitos problemas e muitas reivindicações. 

Então era melhor afastá-los…

O poder imperial resolveu que o melhor seria pôr estes guerreiros já muito bárbaros, de tantos anos aqui na Hispânia, num sítio onde não arranjassem problemas. Mesmo reformado, qualquer veterano tinha por obrigação pegar em armas se fosse necessário. Começavam muito, muito cedo – com dez anos já estavam no exército – e mantinham-se até aos 50 ou 60 anos.

Mas com dez anos ainda não combatiam, ou já?

Não combatiam mas faziam várias coisas. Aliás eram exercitados desde os cinco, seis anos. Mas estávamos a falar…

Da importância de Olisipo.

Exato. Felicitas Iulia Olisipo tem esta importância acrescida que é de constituir o porto da capital da província da Lusitânia. Os transportes na época romana faziam-se muito por rio, mas também pelo Mar Mediterrâneo e até pelo Atlântico. Quando a Britânia é conquistada, em meados do século I, Olisipo tem esta função de constituir um porto Atlântico na rota para as zonas mais longínquas da Britânia. Porque os tumultos na região norte continuaram sempre, era fundamental que as legiões tivessem apoio e abastecimento, e isso era feito através desta rota.

Além dessa função, quais eram as principais atividades de Olisipo?

O rio oferecia um manancial que era exportado para todo o império romano: o peixe. A nossa sardinha, que hoje tanto apreciamos, era intensamente explorada na época romana. Têm aparecido tanques da salga de peixe no subsolo da cidade, e essa atividade económica era tão importante que foi criada uma cidade para se dedicar exclusivamente a essa atividade, que foi Troia. Troia era o maior posto industrial de transformação de peixe que existia em todo o império romano e isto atesta claramente a importância não só de Troia mas sobretudo de Olisipo.

Não era em Óstia, o porto da antiga Roma?

Não, era aqui. Chegou-se a um ponto em que Olisipo já não tinha capacidade para responder às solicitações, então resolveu-se fazer uma cidade autossuficiente – com zona de necrópole, com grandes casas para os capatazes, com latrinas, com todas as infraestruturas necessárias – exclusivamente dedicada à transformação do peixe. Além disso havia outras riquezas: o azeite, o vinho das regiões limítrofes da cidade. Os autores clássicos também referem o ouro que existia no rio Tejo, e aliás na Idade Média ainda há registo da exploração de ouro.

O seu livro chama-se Viagem ao Passado Romano na Lusitânia. Quando falamos de Lusitânia, falamos de quê?

Hoje em dia utilizamos o termo Lusitânia e pensamos que é o nosso território, Portugal. É uma identificação que foi feita ao longo dos séculos. Mas não existia uma terra lusitana, não existia um povo lusitano – a Lusitânia é uma criação romana e que só pode ser entendida nesse contexto. Aquilo que existia no território atualmente português e espanhol era uma quantidade de tribos. Algumas tinham uma mesma língua ou uma língua aproximada, que pode ser designada por língua lusitana, embora não saibamos bem o que é isso. E depois, consoante as regiões de Portugal, há formas de absorver a cultura latina muito diferenciadas.

Varia de Norte para Sul?

Sim. A cultura do Sul estava muito mais habituada a culturas distintas, a povos com outras mentalidades, com outros materiais. A apetência para receber uma nova cultura era muito maior do que a de povos que estavam afastados desta multiculturalidade. Beja é um caso curioso. Foi uma cidade romana importante, Pax Iulia, e os vestígios que subsistem permitem-nos vislumbrar uma aceitação das modas e da cultura de uma forma extremamente rápida. Eu gosto muito dos elementos arquitetónicos e não consigo deixar de falar de capitéis…

Os capitéis do Sul são mais ‘puramente’ romanos?

Os capitéis de Beja são o supra sumo das normas decorativas então em voga. No Sul estavam muito mais habituados às novidades, imitavam as novidades, que eram muito rápidas a surgir e a desaparecer. O novo-riquismo que caracteriza o povo romano, por exemplo, foi amplamente aceite na região Sul. E, como disse, os capitéis romanos que existem em Beja são dos melhores que existem no império. São tão bonitos como os de Óstia ou do museu de Nápoles. 

Por falar em modas: no seu livro refere um relógio oferecido por Quinto Tálio a Idanha-a-Velha. Como é isso? Os romanos já tinham relógios?

Na época romana há uma tentativa de medir o tempo de forma universal, que fosse válida para toda a gente. Isso é uma novidade desta civilização, uma tentativa de uniformizar hábitos. Só não se sabe bem qual o tipo de relógio a que essa inscrição se refere, se seria uma clepsidra, um relógio de água, ou um relógio de pedra, que com um gnómon permitia ver as horas.

Um gnómon?

É o ponteiro que permite fazer a leitura através da sombra.

O facto de já terem relógios pode levar-nos a concluir que os romanos teriam uma civilização mais requintada do que poderíamos imaginar?

Sem dúvida. Hoje pensamos na nossa Europa e achamos que é um grande feito – e de facto é um grande feito ter conseguido unir tantos povos – mas o Império Romano era muito mais vasto do que isto. Estamos a falar de zonas orientais, norte de África, Europa… Atenção, não é que eu defenda a sociedade romana para nós. Quem tivesse a sorte de pertencer à classe alta teria uma vida muito mais agradável do que o português ou o europeu da classe média, mas quem tinha o azar de pertencer às classes menos favorecidas ou de nascer escravo era uma vida de sofrimento enorme. Embora haja algumas nuances em relação a isto. 

Quais?

Os libertos, por exemplo. Alguns escravos ganhavam a liberdade e tornavam-se riquíssimos, influentes em toda a sociedade romana e até junto do imperador. Os principais confidentes de Nero eram libertos. O Caius Heius Primus era um liberto. Este antigo escravo conseguiu alcançar uma posição social e económica de tal forma importante que mandou fazer toda a estrutura do muro do proscaenium [muro que separava o palco da zona dos espectadores], que são 28 metros, com nichos, com uma inscrição rebuscadíssima, que certamente estaria avivada a ouro, e com esculturas a ornamentarem a parte superior do muro.

Isso saía caro?

Caríssimo. Este liberto tinha dinheiro, mas queria também ascender socialmente. Para isso nada melhor do que escolher o edifício lúdico mais espampanante, mais importante da cidade, e para no centro desse edifício ter mandado fazer esta obra de remodelação e colocar aí o seu nome. A inscrição estava escrita numa única linha: num limite está o nome do imperador Nero – Nero é a primeira palavra da inscrição – e no outro está o nome do liberto. Ele coloca ao mesmo nível o nome do imperador e o seu. Curiosamente, Nero é o imperador maldito, que depois sofreu a damnatio memoriae – quer as suas esculturas, quer as inscrições com o seu nome foram partidas, o nome dele foi riscado, foi proscrito – mas aqui nesta inscrição o nome dele preserva-se. A palavra Nero não sofreu nada.

O que é que isso indicia?

Na minha opinião, significa que o Caius Heius Primus tinha tanto poder na cidade que ninguém se atreveria a estragar uma obra que ele tinha encomendado e que tinha pago. 

E quem era esta figura tão poderosa?

Era um novo-rico, disso não tenho qualquer dúvida. Toda a sociedade romana era muito exuberante, gostava muito dos sinais exteriores de riqueza. Ser rico era imensamente importante, era o objetivo de vida. Seguramente que Caius Heius Primus mostrou ser, enquanto escravo, um homem de confiança dos Hei, uma família riquíssima que negociava em portos. A um liberto é permitido fazer tudo – a um cidadão livre já não é. Certamente desempenhou um papel de testa de ferro à frente dos negócios dessa família aqui no porto de Olisipo, também uma cidade comercial, um porto. Quando as ruínas foram identificadas pela primeira vez em 1798 foi descoberto um cipó que devia servir de base a uma estátua dele. Eu adoraria saber como é que ele seria! É muito fácil a pessoa pender para estes pormenores comezinhos… [risos]

Qual é o melhor exemplo de um vestígio onde sintamos a presença romana? O templo de Diana é talvez o caso mais óbvio, mas existem outros?

Existem muitos outros. Temos um património arqueológico que, embora seja muito rico, não é muito conhecido. Se pensarmos em Espanha, são milhentos os exemplos que nos assaltam a memória. Há cerca de 30 anos, quando comecei a trabalhar aqui, visitei Medellín. Aquilo era quase uma vila-fantasma, não tinha ninguém. Nessa altura tinham feito escavações e tinham encontrado o início de um arco e tinham remontado o arco com pedra daquela altura. Era uma paisagem completamente incongruente, com a terra toda, os vestígios das bancadas do teatro e depois um arco todo remontado com pedra nova. Nós posicionamo-nos no lado completamente oposto a este. Não reconstruímos nada. Isto tem algumas vantagens mas também tem enormes desvantagens. As coisas não ficam preservadas, não ficam conhecidas, e o que não se conhece não se protege.

E o que desconhecemos nós que valha a pena conhecer?

Muita coisa. Se tivesse de eleger um sítio em Portugal acho que seria Idanha-a-Velha. É um sítio onde posso ir cem vezes e nunca me cansarei. É uma pérola sob qualquer ponto de vista. Vista ao longe é um sítio magnífico, tem o inselberg de Monsanto, aquele fenómeno geológico por trás que enquadra a cidade baixa de Idanha. E depois é lindíssima ao pé, porque nada está alterado, teve um projeto de intervenção arquitetónica que não interfere com as casas medievais nem com as atuais. E é um sítio com pessoas – poucas -, algumas das quais continuam a viver uma vida não muito diferente daquela que teriam há mil ou dois mil anos. Idanha ainda está inteiramente por descobrir e, de forma muito egoísta, eu prefiro que não seja descoberta.