Seria possível uma criança sobreviver sozinha na floresta mais de 24 horas?

Os casos são raros, mas acontecem. Em setembro, um rapaz de três anos sobreviveu três dias ao frio da Sibéria

Chamaram-lhe Mogli, o menino da selva, e a história poderia bem ter sido escrita por Rudyard Kipling. Aos três anos, Tserin Dopchut, natural de Khut, no sul da Rússia, esteve em setembro mais de 72 horas perdido em plena floresta siberiana, sozinho e sem nada para comer. À noite, a temperatura na região desce abaixo dos zero graus nesta altura do ano e Tserin contou aos pais ter–se aninhado nas raízes de uma árvore para se proteger. Perdeu–se quando correu atrás de uns cachorros com que estava a brincar. Enquanto os animais lhe fizeram companhia, esteve bem. Mas depois chorou todas as noites, relatou a família na imprensa internacional.

Quando foi encontrado, a notícia correu mundo. Como pode uma criança tão pequena sobreviver a uma situação destas sozinha? O caso de Martim, encontrado ontem em Ourém, depois de alegadamente ter passado uma noite ao relento numa zona de serra, volta a levantar a questão. O caso ainda está a ser investigado e os contornos poderão revelar-se diferentes: a criança foi encontrada molhada, com sinais de hipotermia, mas relativamente bem – até já teve alta –, o que permite suspeitar que poderá não ter estado sempre sozinha. Pediatras ouvidos pelo i admitem, porém, que do ponto de vista clínico é possível uma criança sobreviver até por mais tempo, embora tudo seja muito variável: os mecanismos de sobrevivência e as sequelas vão depender também da experiência de vida nos primeiros anos e da autonomia que o menor tiver desenvolvido.

Helena Almeida, pediatra e diretora clínica do hospital Amadora-Sintra, sublinha que, do ponto de vista clínico, a ingestão de líquidos é mais decisiva do que a alimentação. “Podemos estar vários dias sem comer, mas a resistência à desidratação é menor.” Salvaguardando não conhecer os contornos do caso, a pediatra explica que aos dois anos, e estando a chover como tem estado nos últimos dias, uma criança já pode ter instintos como beber a água da chuva ou lamber as poças – no fundo, o que fazem os animais.

Quantificar quanto tempo uma criança poderia estar numa situação destas é, contudo, uma equação impossível neste ou em qualquer outro caso, até porque haverá sempre outras ameaças a contabilizar. “Vai depender imenso da sua estrutura, do nível de atividade, da temperatura. Ou até do seu estado emocional, se está mais ou menos ansiosa.” Sendo certo que, para uma criança, sentir-se perdido será uma experiência ainda mais assustadora. “Uma criança assusta-se muito mais do que um adulto. Mesmo não tendo noção do perigo, chora porque não tem ninguém à sua volta.”

Ana Jorge, pediatra no Hospital Garcia de Orta, também sublinha que os mecanismos de sobrevivência dependem das experiências adquiridas nos primeiros anos. Mas acentua que, do ponto de vista clínico e até psicológico, há vários casos de sobrevivência, sendo depois necessário avaliar as sequelas. “Quanto há catástrofes, algumas crianças são encontradas até ao fim de mais tempo sem ingerir alimentos ou líquidos.”

100 horas sem beber Sabendo–se que as crianças (como os idosos) são mais vulneráveis e não havendo indicadores precisos, tem havido algumas pistas sobre os limiares de risco para o ser humano. No campo da fome, uma das referências mais citadas é Mahatma Gandhi, que sobreviveu a uma greve de fome de 21 dias, apenas com alguns goles de água, e isto quando já tinha 74 anos e um estado de saúde débil. Portugal acompanhou mais recentemente o caso de Luaty Beirão: em 2015, 36 dias de greve de fome deixaram o ativista luso-angolano em risco de vida, tendo depois recuperado.

Se o corpo humano parece ainda resistir algum tempo à falta de alimento, Claude Piantadosi, da Universidade de Duke, estima que o organismo possa sobreviver 100 horas sem ingestão de água a uma temperatura ambiente média – cerca de uma semana –, e o risco aumenta com o calor. Da mesma forma que, numa situação de frio, a hipotermia pode agravar o estado de saúde e levar uma pessoa a descompensar mais depressa.

Milagres Se as hipóteses físicas podem não ser assim tão baixas, as histórias de crianças que sobreviveram de facto sozinhas parecem entrar sempre com outros fatores. Tserin não foi o primeiro a resistir vários dias na floresta siberiana: em outubro de 2013, Karina Chikitova, também de três anos, esteve 11 dias em paradeiro incerto. Perdeu-se quando fazia uma caminhada com o pai e, segundo relatou o “Siberian Times”, sobreviveu a comer bagas e a beber água do rio, o que já estaria habituada a fazer.

Histórias em que a ajuda acabou por vir de animais de companhia são também comuns. Em 2011, Tyler Jacobson, de dois anos, passou uma noite ao relento numa mata, na Carolina do Norte, Estados Unidos, apenas com uma fralda vestida. Saiu de casa sem a mãe dar conta, mas foi seguido pelo cão da família, um labrador, que o terá ajudado a manter-se quente.