Benfica – Sporting. Pior que inimigos…

Tudo começou no dia 1 de dezembro de 1907. Ou antes ainda, quando um grupo de rapazes trocou Belém por Alvalade e criou ‘um fel’.

Foi em dezembro, como agora. Foi no dia 1 de dezembro de 1907 que Benfica e Sporting (vai assim, por ordem alfabética, para não acicatar ainda mais a rivalidade) se defrontaram pela primeira vez. Nessa altura, o Benfica ainda era Sport Lisboa. 

No dia 30 de novembro, o Diário de Notícias noticiava esta possibilidade: «Vida Sportiva. Foot-ball. Desafios da Liga. Devem realisar-se hoje, no campo de Carcavellos, os desafios da Liga entre o Sporting Club de Portugal e o Sport Lisboa e entre o Carcavellos Club e o Club Internacional de Foot-ball». (Respeitou-se, como não podia deixar de ser, a redação da época). 

A possibilidade desse «devem» tornou-se realidade. E os desafios disputaram-se mesmo. Contavam para o Campeonato de Lisboa, a mais importante competição nacional de então. 

Em 2007, tive a oportunidade de publicar um livro sobre os 100 anos do dérbi. Dei-lhe como título uma expressão do bem-humorado Dino Segre, autor do fantástico A Loira Dolicocéfala sob o pseudónimo de Pitigrilli: Pior que Inimigos eram Irmãos. A raiz da rivalidade não é só uma. São várias e crescem com a velocidade com que o fogo se espalha por um campo de milho seco. Nasceu no dia em que os irmãos Rosa Rodrigues se deixaram encantar pelo que viam no Campo Grande, na antiga Alameda do Lumiar, hoje em dia Alameda das Linhas de Torres? José Holtreman Roquette, o José de Alvalade, que recebera um terreno do seu avô, o Visconde de Alvalade, erguera um campo de futebol com todas as condições e que era conhecido pelo Sítio das Mouras. Em breve teria também pista de atletismo, courts de ténis, pavilhão com vestiários e armários pessoais, chuveiros e banhos de imersão, sala de estar e de jogos e até uma cozinha equipada para a preparação de refeições quentes. Em Belém, temeu-se pela vida do Sport Lisboa. Cosme Damião e Félix Bermudes, figura ímpar da cultura portuguesa, tomaram as rédeas do clube. Entraram na modernidade.

Gente fina

Tanto um clube como o outro foram fundados por gente de sociedade. Enfim, estávamos ainda nos anos da monarquia, e haveria de fazer a ligeira distinção entre sociedade e fidalguia. Aceitemos esta diferença como boa: gente de sociedade em Belém, gente fidalga no Campo Grande.

Desde cedo, o Sporting pretendia assumir a sua costela elitista. Enquanto no Laboratório Franco – Especialidades Farmacêuticas, a primeira ata de constituição do Sport Lisboa era exarada num papelucho vulgar de Lineu, a ideia de fundar o Sporting surge para os lados de Belas, onde Francisco Gavazzo realizava uns piqueniques, festas dançantes, e umas partidas de ténis e de foot-ball que reuniam, segundo a imprensa da época, «personalidades da melhor sociedade de Lisboa».

Artigo 1º. dos primeiros Estatutos do Sporting Club de Portugal:

«Sporting Club de Portugal é o título d’uma associação composta d’individuos d’ambos os sexos de boa sociedade e conducta irreprehensivel».

Os novos sócios eram aceites ou recusados sob o secular sistema das pedras brancas e pretas depositadas num saco pelos sócios mais antigos. Com algumas exceções: havia nomes inaceitáveis, mesmo que conseguissem recolher a totalidade das pedras brancas – indivíduos cuja conduta não era irrepreensível.

O símbolo do clube foi José de Alvalade buscá-lo ao brasão de família de seu primo, D. Fernando de Castelo Branco, Conde de Pombeiro: um leão rompante em campo azul. Trocou-se o azul pelo verde, como símbolo de esperança. 

Um leão ainda branco, na altura. Que deixava de peito a arfar de orgulho Mário Pistachini, que viria a ser presidente do clube: «O leão branco, nobre e puro, em campo verde, vibrante de força, de coragem e de justiça, habita na alma de todos os sportinguistas».

Sonhos de grandeza

Com menos poesia, mas iguais sonhos de grandeza, os fundadores do Sport Lisboa tinham estabelecido também eles as suas cores e o seu emblema: «Alegria, colorido e vivacidade no vermelho do equipamento, como base de entusiasmo na luta desportiva; a águia como símbolo de elevação de propósitos e objectivos, largo espírito de iniciativa e ânsia de subir o mais alto possível; legenda como apologia da união – e pluribus unum».

A rivalidade tinha palha por onde arder.  Quando os trânsfugas do Sport Lisboa defrontaram finalmente o Sporting, houve quem escrevesse no jornal Os Sports: «O Sport Lisboa esteve bem, mas com muita infelicidade e talvez esta motivada pelo estado de enervação do Sport Lisboa, por se encontrar com um grupo formado por antigos irmãos cuja recordação é um fel». O inesquecível Nélson Rodrigues chamava ao Flamengo e ao Fluminense, os «irmãos Karamazov do futebol brasileiro».

Oito ex-jogadores do Sport Lisboa encontravam-se, nessa tarde chuvosa de Carcavelos, do outro lado do campo, com a camisola do Sporting. Neste jogo havia um fel. Um fel de irmãos.

Um Benfica-Sporting ou um Sporting-Benfica não é apenas um jogo. Nem sequer, como diria o velho Bill Shankly, criador do grande Liverpool, em relação ao futebol, um caso de vida ou de morte: é muito mais do que isso.

Um Benfica-Sporting mete tudo e o mais que se está para saber: já viu gente assassinada e gente a morrer de aflição; foi interrompido ao soco e à navalhada; teve um brinco perdido num pontapé violento e num golo soberbo; teve uma equipa a entrar em campo só com dez jogadores, e a ganhar apesar disso; teve um árbitro expulso por expulsar um jogador; teve marechais e coronéis, presidentes do conselho e da República; gerou manifestações políticas e movimentos cívicos; teve desistências e abandonos, multidões ávidas e jogadores únicos, alegrias e tristezas, lágrimas e sorrisos, opulência e miséria como tudo o que é profundamente humano. O romance dos Benficas-Sportings é um poema interminável. O resto, podia dizer: é paisagem…

Com Lisboa e Tejo e tudo.