Roberta Medina. “No Brasil já perdoaram termos trazido o Rock ir Rio para Portugal”

      

Pedir a uma mulher como Roberta Medina que, dois dias antes do arranque de mais um Rock in Rio (RiR), se sente para uma entrevista um pouco mais longa pode soar a missão impossível. Não foi totalmente impossível, porque a responsável pelo festival que nasceu no Brasil há 31 anos é daquelas mulheres que arranja sempre tempo, mas não deixou de ser uma conversa marcada pela urgência do tempo.

Quando faltam dois dias para o arranque de mais uma edição, o que se passa na sua cabeça e na organização?

Enquanto gestores, nesta altura, já estamos a trabalhar no futuro. Já estou a ter reuniões sobre a edição de 2018. Mas a maior parte da equipa está dedicada a terminar os vários detalhes, a garantir que a operação está bem distribuída. Passamos muitos meses a trabalhar no papel e à medida que a data se aproxima, as poucas pessoas vão-se transformando em centenas e depois milhares. E tudo o que estava no papel vira real, sem ensaio geral. No RiR não há espaço para ensaios gerais. Mas é a sétima edição, a grande parte da equipa já está com a gente há muitos anos e conhecem muito bem o recinto e o evento. A equipa está muito afinada. Temos um desafio constante, sinto uma inquietação constante de fazer sempre melhor. Por isto, dois dias depois de terminar o evento já estamos todos reunidos, toda a equipa, para vermos o que pode ser melhorado na edição seguinte. Mesmo sabendo que muito do que fazemos, o consumidor final nem se apercebe. Mas vamos otimizando, por exemplo, hoje a gente monta o evento em menos um mês do que era no passado. Isso torna o evento mais sustentável.

Apesar dessa sensação que a equipa sabe o que fazer, quando se aproxima o arranque é inevitável sentir um certo nervoso miudinho?

É mega! Um nervoso gigantão! Eu quero é logo abrir portas! São tantos meses a preparar que a ansiedade vai crescendo. Agora já não sofro tanto, mas antes olhava para alguns espaços de parceiros e só pensava como é que era possível ainda estarem como estavam quando faltavam horas para abrirmos portas. O meu primeiro trabalho foi num shopping e lembro-me quando foi a expansão desse espaço, na véspera, às oito ou nove da noite, aquilo estava um pandemónio, nem se viam as montras, tanto era o pó no ar. Fiquei apavorada. Mas no dia seguinte estava tudo a brilhar e pronto para inaugurar.

E consegue dormir uma noite de sono normal nestes dias?

Há muito tempo que já não o faço!

Mas por excesso de trabalho ou porque, mesmo quando chega à cama, não pára de pensar no trabalho? Ainda por cima o seu marido também trabalha no RiR.

É uma mistura das duas coisas. Por um lado é excesso de trabalho, porque há muitas decisões para tomar até à última hora e os dias são muito longos.

É nesta altura que se vê mais vezes a Roberta pitbull, que é uma das suas alcunhas?

É provável! A pitbull tem muito a ver com tomadas de decisão que têm se ser afirmativas. Odeio negociar, acho que, quando a gente vai negociar e sabe como tem de ser, não tem negociação, tem de ser assim. Tenho pouco tempo para filosofias, prefiro ser precipitada Mas eu estou cada vez mais mansa. E sou o oposto na vida pessoal. Aí adoro pensar nas coisas. Se bem que filosofia muito etérea me dá cansaço.

Todas as edições se questiona o cartaz do RiR e como, claramente, a música não é o fator mais importante do festival.

Acho que essa conversa já não se faz muito, esse debate está ultrapassado. Claro que muita da media, dos formadores de opinião, têm uma coisa com a música alternativa. Acham que, quanto menos gente gostar de uma banda, mais legal é. Mas acho que essa conversa existe muito quando anunciamos o cartaz, só que este ano o cartaz do palco Vodafone deu uma acalmada nos nervosos da música alternativa. Só que têm de entender que essa música não é o que vende para um evento destes. Também vende, mas em volume de venda, os headliners é que são o mainstream.

Mas foi uma decisão propositada, um piscar de olhos a esses alternativos, a aposta forte no palco secundário que foi feita este ano?

Houve uma evolução. O segundo palco do RiR sempre foi algo novo. Tivemos o Raízes, em 2004, que era world music, depois o Rock Stage, em 2006, que eram novos talentos, e de 2008 a 2012 foi o Sunset que eram encontros inusitados entre artistas de renome. Em 2014 começou a ser palco Vodafone, com música alternativa. Este ano até acho que a programação desse palco está mais integrada na proposta do RiR, até porque fizemos o cartaz em conjunto com a Vodafone. Mas sobretudo este palco tem a função de mostrar algo novo. Até porque, como o Gilberto Gil disse uma vez, o povo não sabe o que quer, mas quer o que não sabe. E a verdade é que, quando se vem para um evento desta dimensão com um grupo de amigos, não gostam todos da mesma coisa. Assim cada um tem um mundinho aqui dentro. Somos mainstream mas também temos os nichos. Por isso fomos os primeiros a botar um palco de dança dentro de um festival. E as pessoas vão à loucura ali! Mas quantas é que, de facto, procuram aquele mundo? Um nicho.

Mas o RiR é, e quer continuar a ser, um evento mainstream?

Sim, historicamente. E seguiremos sendo. Somos um festival mainstream, assumidamente e sem vergonha.

Há alguma coisa que queira muito ver este ano?

Até tenho medo de responder porque sempre que quero ver alguma coisa não consigo. Em Florence and the Machine, no Brasil, só queria ver uma música, uma! Assim que começaram essa música, estava na tenda VIP, e vem um amigo ter comigo a dizer que tinham roubado o telefone à filha. E lá tive de ir para a polícia.

As pessoas abordam-na sem pudor, sobre qualquer assunto?

Sim… Porque até uma coisa que nos possa parecer pequena, para aquela pessoa é grande. E tenho de dar atenção e arranjar alguém para solucionar o problema. Seja qual for esse problema. Mas este ano o que quero mesmo ver é o musical, que é a nossa grande aposta. E depois tento sempre ver um pouco dos Xutos…

Que juntamente com a Ivete Sangalo fazem sempre parte do cartaz.

As pessoas falam muito nisso, mas basta ver as imagens da cidade do rock para perceber quais são os shows em que a plateia vai mais ao delírio. São esses. E o que eu mais gosto é de ver gente pulando e cantando. E estes dois são sempre um sucesso. E quanto à Ivete, as pessoas voltam todas as edições para a verem. Mas sei que há fenómenos que são difíceis de entender.

Como por exemplo?

Quem iria imaginar que o dia de Queen com Adam Lambert iria ter mais gente do que o dia de Bruce Springsteen? Acho que tem a ver com o facto de haver gente que viu o Bruce em 2012 e que agora decidiu ver Queen. O tamanho do mercado não é grande e as pessoas têm de optar.

E também há facto de no Adele tocar em Lisboa um dia depois do arranque do RiR e, durante o mês de maio, ter havido ainda Muse e AC/DC. Isso influenciou a venda de bilhetes do RiR?

São todos artistas com perfil do público do RiR.

E logo de seguida vem o NOS Alive.

Isso é outro público, não tem nada a ver, são planetas diferentes. Agora os outros três, sim, poderiam estar no nosso cartaz, mas não estão fazendo festivais. Mas sim, este foi um ano muito mais disputado. É o mesmo público e não há magia a fazer.

Falou do musical. Porquê esta aposta agora? Era altura de olhar para trás, para a história do RiR?

Quando a gente chegou a Portugal em 2003, para preparar a edição de 2004, percebemos muito rápido que os 19 anos de história que o RiR tinha no Brasil era algo legal, mas as pessoas queriam era que se construísse uma história nova do RiR, aqui em Portugal. Pouco interessava o passado. E por isso insisti que se trouxesse este musical e a temática dos 30 anos para cá, porque é uma história muito rica que queria que os portugueses conhecessem. Fala-se muito de Woodstock, mas o RiR é cinco vezes maior. O RiR foi extremamente transformador e inovador. E eu achei bacana que aqui em Portugal conhecessem isso. E são 80 músicas em 55 minutos de espetáculo!

Porque acha que os portugueses não tinham curiosidade em conhecer essa história?

Porque não a viveram. Aliás, ainda há quem diga que somos o festival brasileiro. Mas o RiR só volta a existir e parte para o mundo por causa de Portugal. O RiR nasceu no Brasil mas já não é só brasileiro. Da mesma forma que eu também já não sou 100% brasileira. E não estamos aqui de passagem.

Mas foi o que sentiram no início?

No início sentimos que havia uma grande desconfiança. Lembro-me de uma conferência de imprensa, do Santana Lopes, em que ele dizia: “Ainda bem que vocês vieram mostrar que os brasileiros sabem ser profissionais”. Existe em Portugal um estigma muito grande em relação ao ser brasileiro. E o mercado local, que resistiu muito à nossa chegada, também forçou essa conversa. Houve um protecionismo nacional.

Acha que esse mercado local que refere nunca olhou para o RiR como estando no mesmo patamar?

Pois não, senão não se preocupava tanto com a gente. [diz, com ar irónico] A gente só chateia porque a gente é líder. O RiR veio dar trabalho aos outros. O perfil do consumidor que veio ao RiR passou a querer ir a festivais, é um público mais velho, que procura uma infraestrutura mais sofisticada.

E no Brasil, já vos perdoaram terem vindo para Portugal?

Ah, já! Desde que voltámos em 2000 ficou tudo resolvido. Mas antes chamaram-nos traidores. Eu achava o máximo porque via como uma declaração de amor. Os brasileiros olham para o RiR como uma propriedade do Brasil. Vivi a primeira edição com seis para sete anos, o segundo com 12 e depois foram dez anos sem RiR. Durante esses dez anos, as pessoas continuavam a parar o meu pai a pedir para o RiR voltar. É um marco histórico, uma bandeira de uma geração. O RiR foi uma revolução. Foi a primeira vez que os grandes artistas estiveram no Brasil, mas acima de tudo teve a ver com o facto de o Brasil estar a sair de uma ditadura militar. O presidente da república, pela primeira vez, estava a ser eleito com voto direto, no mesmo dia em que tomou posse, o Cazuza estava no palco a anunciar a eleição. Foi uma revolução no país. E estamos a falar de uma geração que lutou pela liberdade de expressão! Depois disso, de repente, havia RiR, sendo que os festivais de música estavam associados a sexo, drogas e rock ‘n’ rol, e tanto a igreja como os governos eram contra. Foi uma batalha, tinham medo de permitir algo que iria reunir milhares de jovens.

O que se lembra da primeira edição?

Quase nada. Lembro-me de brincar com os produtos oficiais, de brincar com as purpurinas e de dormir no chão dos camarotes. Mas da segunda edição lembro-me muito bem. Era super fã dos New Kids on the Block! Mas nessa edição também assisti a tudo e mais alguma coisa. Fiquei apaixonada pelo Billy Idol. E vi George Michael, vi Prince, Joe Cocker… E lembro-me de, no dia do metal, ficar apavorada com os Judas Priest, que achei um filme de terror.

Em casa o assunto RiR era uma conversa permanente?

Sim, enquanto história e saudade. Mas as minhas memórias do início do RiR são muito duras. Nessa segunda edição, por exemplo, tenho memória de pessoas da escola ficarem minhas amigas até ao dia de ganharem o bilhete e depois nunca mais falarem comigo… Comecei a lidar com interesseiros muito cedo. E lembro-me de emoldurar o último cheque que o meu pai pagou das dívidas da primeira edição quando eu já tinha 16 anos. Por isso, as minhas memórias do RiR não eram as melhores. E lembro-me que o meu irmão batalhou muito para ele fazer a terceira edição e eu não entendia o porquê. Para as pessoas o RiR era um marco, mas para a família não, o meu pai ficou doente, crashou financeiramente…

Quando é que passou a perceber o desejo de recuperar o RiR?

Foram os anos que me ensinaram. A terceira edição começou a marcar um novo ciclo onde o negócio começou a funcionar e, em Lisboa, finalmente montámos um modelo de negócio viável. E essas memórias forçam-se suavizando.

Tinham de suavizar, até porque a Roberta passou a ser parte ativa da organização do RiR.

Tenho uma coisa, que acho que é um equilíbrio do pai e da mãe, e que é uma valorização da vida. Para mim, o trabalho não pode ser tudo. Para o meu pai, o trabalho ocupa as 24 horas. Eu quero ter tempo para a minha família e os meus amigos. Acho que esse contraponto ganhei da minha mãe, que é muito esotérica, apesar de ser fisioterapeuta. Ela sempre foi a única dos cinco que não trabalhava ali e invariavelmente pedia para falarmos de outra coisa. Ela chegava a sair da mesa e ninguém notava porque estávamos todos a falar do RiR. Ganhei isso dela.

O sonho do seu pai recebeu mais força por parte dos brasileiros por ele ter sido sequestrado e isso naturalmente cria empatia nas pessoas?

Acho que não, acho que tem mesmo a ver com a importância histórica da primeira edição. E o meu pai já era muito poderoso como publicitário e tinha muita exposição.

Tem recordações muito vincadas do sequestro do seu pai? É algo que, de alguma forma, a atormenta?

Não sei dizer o que eles fizeram, mas alguma coisa muito bem feita o meu pai e a minha mãe fizeram porque a gente teve sempre segurança antes do sequestro, depois de o meu pai ser libertado, nunca mais. De resto, basta viver no Rio de Janeiro para ter preocupações com a violência. Você pensa o tempo todo em coisas que podem acontecer.

É essa uma das razões para, nos últimos anos, dizer que quer construir a sua vida mais em Portugal?

Não. Essa decisão tomei em 2005, ainda nem casada com um português eu era. Mas uma coisa é verdade: desde que a Lua nasceu, a segurança passou a ser uma preocupação determinante. No dia em que umas meninas foram assaltadas quando iam a sair do carro, perto do escritório na Barra, a Lua era recém-nascida… Blindei o meu carro. Sei que é uma maluquice, mas fiquei apavorada.

O cenário atual do Brasil faz suspeitar que a criminalidade vai subir ainda mais?

Já está. Quanto mais pobre, maior a criminalidade ‘barata’. E nos últimos anos teve uma outra coisa complicada: a entrada do crack, que deixou muita gente descontrolada. Já não é só roubar a bolsa, é agredir também. E preocupa-me que o PT esteja estimulando, que num país como o Brasil é uma bomba-relógio, é estimular a disputa entre ricos e pobres. Mas isso não é uma realidade, não há assim tantos ricos. O Brasil é um país pobre. Mas essa linguagem do PT cria discrepâncias muito agressivas. Isso é preocupante. Mas se o governo interino conseguir tomar atitudes que levem a economia a dar sinais positivos, pode acalmar.

O afastamento da presidente Dilma Rousseff era inevitável?

Era. Perdeu o governo, perdeu o povo, perdeu todo o mundo, não dava para continuar.

Mas acredita na sua inocência?

Acho que, de alguma forma, ela deixou acontecer algo que noutros governos não aconteceu: a justiça nunca foi tão longe. E ouvi uma entrevista do Fernando Henrique Cardoso que dizia que achava que ela era uma pessoa séria… Mas o sistema brasileiro é corrupto, não temos alternativa porque está tudo enrolado, não tem um político que não esteja indiciado em alguma coisa. Espero que este movimento agora provoque uma mudança cultural profunda. Mesmo que explodissem o congresso e elegessem outro fica a mesma porcaria! Espero que ter tanta gente importante presa sirva para a gente se assustar e mudar as nossas convicções. E o mais feio de tudo é saber que o mundo está a assistir a esta baixaria.

Sente vergonha em relação ao que se passa?

Completamente!

Apesar de estar cada vez mais tempo em Portugal, não se consegue desligar do que se passa no Brasil?

Falo mais com o meu pai e o meu irmão porque têm empresas que sofrem com a situação. E tenho um grupo de amigos com quem debato muito no Whatsapp. Mas eu quando estou num país quero estar dedicada a esse país. E eu estou dedicada a Portugal. Não estou aqui temporariamente, vivo aqui, esta é a minha realidade. Mas claro que não me esqueço do que se passa no Brasil.

E chegou a questionar a próxima edição do RiR no Brasil?

Foi um debate constante. Mas a edição de 2017 está fechada. Vai acontecer.