Uma camisaria de encher as medidas

Figuras como António Costa e Américo Amorim estão entre os seus clientes. Há 30 anos que a Camisaria Machado,em Famalicão, veste gente da alta finança, políticos e empresários. Alcino e Lúcia,os proprietários, têm remédio para tudo:barrigas dilatadas, pescoços curtos ou ombros descaídos. E já transmitiram o segredo aos filhos

Muitos lhe têm passado pela tesoura: peitos bojudos, peitaços amplos bem desenhados, abdómenes distendidos ou barrigas lisas e musculadas de muito trabalho de ginásio. Mas nada que a sua considerável habilidade manual não consiga melhorar. Tira medidas a ricos, muito ricos e a gente menos bafejada pela sorte.

Do primeiro-ministro, António Costa, a seus opositores, como Luís Montenegro ou Nuno Melo, ou a Américo Amorim, o homem mais rico do país, todos usam camisas feitas à medida por Alcino Machado. Com 62 anos e o seu quinhão de sonhos, o antigo operário têxtil ainda não desistiu de fazer uso da fita métrica naqueles com quem terçou armas ideológicas noutra época.

O tempo tudo esfiapa, e, com a antiga truculência de revolucionário, desabafa: “Não quero morrer sem fazer uma camisa para alguém do PCP”. A mulher, Maria Lúcia Braga, trata-o como a um garoto sedento de afetos.

Lúcia traz um amigo à conversa. João Granja, ex-presidente do PSD de Braga, freguês antigo da família, já encontrara um jeito de satisfazer o alfaiate: “O João já te disse que vai trazer aqui um deputado do PCP. Diz que ele tem barriga e não arranja camisa à medida. Por isso, homem, deixa lá que não te vais sem fazer esse gostinho”. A história do casal, como qualquer outra, tem os seus antecedentes. Não tiveram direito à infância, mas em compensação o futuro reservava-lhes algo que normalmente não está ao alcance das pessoas da sua classe.

No primeiro e amplo piso da vivenda de três andares onde vivem, em Joane, vila minhota do concelho de Famalicão, Alcino pontifica na mesa de corte. O ateliê, tal como a casa, foi-se arrumando pouco a pouco. Nada de empréstimos, de compromissos que lhe arranjem dono.

No tampo da mesa, tecido de puro algodão, estendido por camadas, espera a tesoura que nas suas mãos, apesar da tendinite crónica que ganhou no labor, não vacila no corte de três camisas talhadas em simultâneo com destino a um cliente de Lisboa. Os olhos, onde parece terem entornado cloro, não exprimem qualquer dor. Resiste-lhe e dá consigo a resvalar para o passado que, esse sim, lhe altera a fisionomia.

Sem direito à infância

Com apenas 10 anos, já andava pelos caminhos dos homens. Junto às azenhas, onde se dava o assoreamento da areia, ranchos arrastavam-na até à margem onde se faziam os blocos para a construção civil. Cinquenta escudos à semana era o que o rapazito ganhava. Em casa eram sete irmãos mais os pais, operários da indústria têxtil, ciclo a que a prol estava destinada a dar movimento, e qualquer ajuda ao magro salário era bem-vinda.
Mas não foi a entrada precoce no mercado de trabalho o pior momento da vida de Alcino. Ainda não passara um ano quando seguiu para ajudante de pedreiro numa equipa de manutenção do Hospital de Riba de Ave da Santa Casa da Misericórdia. O alfaiate pousa a tesoura, as recordações ensombram o olhar sempre transparente: “Era um homem horrível, batia-me ao murro, pontapé. Tinha de adivinhar qual a ferramenta que ele queria antes de ma pedir para ele não se exaltar”. Não valia a pena queixar-se à família dos maus tratos. Se se queixasse, ainda levava mais.

O único escape do miúdo estava no rio Ave, para onde se escapulia à hora de almoço. Em casa, a comida era uma rotina. Sopa de couves com feijão moleiro ao meio dia, de couve-galega à noite. Sardinha, quando havia. Carne só nas festas. Alcino já calibrara a imaginação que lhe permitiria, mais tarde, livrar-se de jugos. Queria com muita força escapar-se a penitências, e o rio abriu-lhe o horizonte. Descobriu que nas traseiras das fábricas, junto à bacia do Ave, se acumulam os despojos em sucata e cobre. Atravessa o rio para a outra margem, empilha e vende no sucateiro. E tomou uma decisão: “Já não vou a casa almoçar”. Com os ganhos do extra, come na tasca ombro a ombro com os homens e ainda lhe sobra algum com que trava as fúrias da mãe.

Do pedreiro tirano apenas se libertou quando completou 15 anos, idade que lhe permitiu entrar na mesma secção de fiação da fábrica onde o pai, que entretanto morrera, chegara a mestre. Mas nunca esqueceu o seu primeiro chefe, carregam-se-lhe as feições sempre que ressuscita a imagem: “Era o Pires. Durante muitos anos pensei que, quando fosse maior, lhe ia bater. Era um desgraçado, mas nunca mais lhe falei. Passa adiante que a vida continua”.

Em 1969, Portugal estava em lenta combustão. Às fábricas, chegavam os protestos do movimento estudantil, o PCP dominava e cativava os jovens da têmpera de Alcino. Adivinhava-se já nele aquela espécie de lutador incansável, e, nesse ano, tal como viria a repetir-se em 1973, participou na campanha eleitoral oposicionista da CDE: “Eu era destemido, não tinha noção. A minha vontade era dar cabo de tudo”. O regime sentia o aperto, e partidários da União Nacional colavam cartazes de propaganda nas árvores do Riba de Ave. Alcino topa-os e trepa para uma quinta: “Eles colavam e eu saltava o muro, rasgava e voltava a esconder-me”. 

Ó mulher, tu não podes ter tantos filhos!”

Na mesma labuta, mas noutra fábrica, andava Maria Lúcia. Conhecer-se-iam num verão quente depois do cortejo fúnebre à ditadura. Também ela não tivera infância, o que só muito recentemente conseguiu perdoar: “Há uma certa mágoa que guardei à minha mãe porque levava muita pancada, ela não desculpava nada”. Carregada de filhos (Lúcia era a mais velha de 13 irmãos), a mãe virou-se para o essencial: comida na mesa. Sempre que chegava mais uma criança, a tristeza tornava-se mordoma da casa. Ali a palavra do padre fazia lei. Um dia, a mulher vai à farmácia e o boticário aconselha: “Ó mulher, tu não podes ter tantos filhos”. Prescreveu algo num papelinho e disse-lhe para entregar ao marido.

Mas o pai de Lúcia não daria semelhante passo sem aconselhamento religioso, e lá foi o homem à igreja apurar se a mezinha não o lançaria ao inferno. Era pecado, foi o sermão. Entretanto, a menina passava os dias a ouvir: “‘Lúcia, olha os meninos’, e lá ia eu cuidar dos manos”. O pai vivia na fábrica e ainda arranjava tempo para consertar calçado, a mãe cozia pão que, com a sua ajuda, distribuía pelas redondezas. Ainda não tinham soado as seis da matina e lá ia Lúcia, oito anos de gente, com a lágrima no olho e um saco de pão: “No inverno era terrível. Ainda era noite, chegávamos a casa das pessoas, que estavam arrumadinhas à lareira com o pote da água ao lume para prepararem o pequeno-almoço, e eu só pensava como gostava de estar ali com eles. Depois, às oito da manhã, ia para a escola, chorava e dizia à minha mãe que ela não gostava de mim. Quando voltava, apanhava”.

Quatro anos depois, aos 12 anos, entra na mecânica do destino dos seus, na área de confeção de uma fábrica têxtil, das muitas que proliferavam na bacia do Ave. É no meio fabril que se junta à Juventude Operária Católica e escreve nos jornais do movimento apadrinhado pelos padres progressistas, que se esgueiram da malha de uma Igreja colada ao regime.

Era do contra e não perdia uma oportunidade de afrontar o patronato. Um dia, ordens superiores informam-na de que, de ora em diante, tinha de usar farda. Havia um tecido que a fábrica não conseguira vender e arranjaram outra forma de rapar o bolso dos trabalhadores. Distribuem-se as vestimentas, todas da mesma medida, pelas operárias, que se veem obrigadas a comprá-las. Lúcia recorda com o mesmo fervor que na época a tudo dedicava: “Eram enormes, e nós ainda as tínhamos de mandar costurar à medida e pagar do nosso bolso. Não quis saber, andei com a minha assim e escrevi um artigo mas não assinei. O jornal era muito lido na fábrica e eles andaram atrás do autor. Tinha 17 anos, e tive muito medo. Não tenha dúvidas, se descobrissem ia presa”.

Até que o 25 de Abril trouxe a liberdade. Lúcia abraçou-a. E quando, um ano depois, pela primeira vez, no Minho, onde a mudança se vivia com despeito, se festejou o Dia do Trabalhador, foi a primeira mulher a merecer a honra de discursar em Famalicão.

Um mês antes, atracara o seu futuro ao de Alcino, compagnon de route de José Pacheco Pereira, à época do PCP (ML) – Partido Comunista Português (Marxista-Leninista) –, de inspiração maoísta, que ajudara a fundar no norte do país. E Lúcia pulara da JOC para um outro movimento de extrema-esquerda, a FEC(ML), Frente Eleitoral de Comunistas (Marxistas-Leninistas). Ela era muito esquerdista e o norte do país muito direitoso e mexeriqueiro: “Diziam de mim cobras e lagartos”, comenta a mulher com o orgulho dos condecorados.

Casamento entre ‘manifs’ e comícios

Estava-se em pleno PREC (Processo Revolucionário em Curso), e o país dividido extrema posições. Alcino, que em Riba de Ave está ligado à atividade sindical, conhece Lúcia, que fazia parte da sua lista de opositores ao PCP, numa das assembleias. Ela logo reparou que tinham as mesmas medidas e estavam destinados a entenderem-se: “Ele era muito pequenino mas tinha o dom da palavra. Fazia umas intervenções inflamadas contra o PCP que me fascinavam. Depois tinha aquele olho azul…”. O norte conservador tremia e incendiava. Alcino clarifica posições: “Havia dentro destes grupos a ideia de que a democracia e a liberdade não iam durar muito. Temia-se um contragolpe. A malta do PCP no sindicato portava-se como rei e senhor e nós achávamos que o sindicato tinha de ser plural, não podia ficar nas garras do PC, que já estava a fazer-se ao poder”. Conheceram-se em abril, e, entre ‘manifs’ e comícios e congeminações para tomar o poder de assalto se fosse caso disso, casam em setembro. A liberdade, que a revolução trazia em todas as vertentes, é levada muito a sério pelos dois. Hoje, rodeados dos três filhos, entre máquinas, pano e botões, recordam a época com a alegria de quem está bem na sua pele.

Lúcia, com o olhar travesso depositado na filha mais velha, pega na história: “Ela nasceu logo em maio. Chegaram as dores, chamei a minha mãe, que dizia que não podia ser. Eu, na cama, tinha a certeza. Até que ela desconfiou: ‘Não me digas que me borraste as ventas!’”. Já lhe perdera o medo, e ripostou: “Se lhe borrei as ventas, você também borrou as de sua mãe, que eu também nasci 15 dias antes do tempo”. A senhora, temendo que a conversa fosse ouvida pelo Altíssimo, tentou salvar-se: “Mas eu não preciso do perdão de Deus, foi de um tombo que dei!”. Entre as contrações, Lúcia faz uso da pilhéria: “Também eu, minha mãe, também eu dei um tombo”. O tempo corre entre memórias, umas melhores do que outras. Alcino, para quem as recordações são um estimulante, despachou entretanto três camisas.

Os filhos, Ângela, Tiago e Eduardo, os três doutores, mantêm com os progenitores uma intimidade própria dos recém-nascidos. Foi com eles que arranjaram corda para a vida.

Apenas um deles, Tiago, o artista da família, formado em Música Clássica pelo Conservatório Superior de Música em Vigo, decidiu interromper a sua marcha pelo mundo para dar continuidade e modernizar a Camisaria Machado, onde há uma trintena de anos gente da alta finança, empresários e políticos escolhem a dedo o modelo das suas camisas.

Tudo começou por acaso, como o casal gosta de lembrar. A Revolução trazia a mudança, mas a estrutura económica de um país sem ferramentas dobrava-se perante os novos desafios. Nas fábricas, adivinhava-se o descalabro. Um dia, Alcino, com grande capacidade para conduzir as experiências, desafia a mulher: “Tu sabes costurar, eu sei cortar. Vamos tentar fazer uma camisa?”. Lúcia, do mesmo calibre, sai ao desafio. Limpa a mesa onde tinham terminado a janta, trocam a toalha pelo tecido e Alcino, com as medidas do irmão como modelo, desenha o molde e dá-lhe o corte. Numa velha máquina, Lúcia dá-lhe forma. O irmão do artista passeia-se de camisa nova e os rapazes da sua geração tiram-lhe a pinta. A clientela chegava.

Alcino, de vistas largas, chega à imediata conclusão: “É este o meu futuro”. E, com 15 contos que pedira emprestados à mãe, compra uma máquina manual. A sua arte passava de boca em boca do norte ao sul do país. Para a sua emancipação do patronato, contribuiu ter-se apercebido de um defeito anatómico da casta masculina que passa a explicar: “Os portugueses, regra geral, têm o pescoço sempre mais largo do que o corpo. Em termos de escala, o 41 obedece a tanto de ombros, tanto de peito, por aí fora. Mas o pescoço não! Encontrar pessoas que têm o pescoço mais fino do que a escala é muito difícil. Quem quer usar gravata e sentir-se folgado, ou manda fazer ou compra o tamanho acima, mas tem de mandar arranjar”. O homem torna-se um espetador criterioso das grandes marcas, coleciona revistas de moda masculina, observa os pormenores, vai podando a imaginação: “Apanhava os moldes de revistas, roubava mas depois interpretava-os à minha maneira. Agora olho para uma camisa qualquer e sei logo a sua origem. Não falha!”. 

“Um tipo com uma camisa muito feia”

Quando Ângela, a filha mais velha, ao preencher a papelada para iniciar o ciclo preparatório, atribuiu aos pais a profissão de costureiros, espicaça também a curiosidade dos professores. E quando, mais tarde, com o curso de Comunicação Social, a rapariga, que graças ao topete dos pais crescera sem experimentar as suas privações, se apanha em Bruxelas a estagiar no Parlamento Europeu, percebe que a fama da sua casa já pulara fronteiras. Numa festa de Natal, entre os vários convidados, um homem desconhecido fere-lhe a sensibilidade: “Era um tipo com uma camisa muita feia, com o logótipo do Pato Donald. Tinha deixado de fumar, engordou muito e aquela camisa era das poucas que lhe serviam. Às tantas, diz-me: “Mas tenho umas camisas muita giras que faço num senhor do norte, o Sr. Machado. E eu dei um grito de alegria: ‘É o meu pai!’”. No PE, onde se cruza com Miguel Portas, com quem o pai andara pelo norte a arregimentar apoios para a fundação do Bloco de Esquerda, espalha-se a notícia, e muitos eurodeputados portugueses, atraídos pelo produto made in Portugal, colocam-na à prova: “Sabe tirar medidas?”. Não sabia. Mas filho de peixe não se afunda, e, nas férias, pede ao pai que lhe ensine. O leque de clientes da camisaria, com a ajuda da prole, que em nada degenerara, ia-se diversificando.
Ângela, de alma citadina, ainda não se vê a seguir o negócio da família. Mas não desdenha as origens e faz as honras da casa: “O meu pai é um estratega, um visionário. Ainda não havia internet e já ele fazia teletrabalho.

Juntou amostras de tecidos, numerou-as e fazia-as chegar aos clientes por correio, e assim expandiu o negócio de norte a sul”. António Costa, por exemplo, está no pacote de clientes desde que assumiu a presidência da Câmara de Lisboa. Neste caso, era Ângela quem se dirigia aos Paços do Concelho para lhe tirar as medidas.

Durante a campanha eleitoral que o catapultou para o Governo, numa passagem por Famalicão, o candidato despistou os jornalistas e pelo seu próprio pé desbravou caminho até descobrir a camisaria que lhe aprimora o visual.

Lúcia, que não permite que as questiúnculas políticas se misturem com o negócio, encontra família em cada cliente: “Estava aqui, em Joane, em campanha, mas fez questão de nos conhecer. Entrou no carro, saiu e veio a pé para fintar os jornalistas. Achei um gesto muito simpático. Os nossos clientes não se esquecem de nós, mandam postais pelo Natal, outros passam por cá e petisca-se”. Num caderno de capa dura, descobre-se centenas de medidas dos primeiros clientes. Deles, Lúcia vai sabendo uma série de notícias avulsas, ou que alguns já morreram. Ainda se lembra da primeira gente ligada ao mundo intelectual que os procurou: “Eram da família do Eduardo Prado Coelho”. Os empresários ligados ao grande capital ou banqueiros vieram depois. “O Américo Amorim começou por mandar uma das suas camisas, agora trato das coisas com a esposa. Geralmente faz às dez camisas por ano e depois manda renovar”.

Alcino corre de máquina para máquina para demonstrar a sua eficiência. Tudo computorizado. Uma é generalista, tipo Bimby: faz colarinhos, as frentes da camisa, pesponta as mangas. Outra fecha a camisa por trás. E há a programada, que serve para casear em cruz ou em pé de galinha, ao gosto do freguês.

A música do ateliê

A Alcino faltam dois centímetros para atingir 1,60m, mas o quinhão que lhe coube em alegria não se ajusta a nenhuma métrica: “Já tive de subir a um banco para tirar as medidas a um cliente. Era um alemão de 2,20 m. Mas também já tive um, o Sr. Carlota, da altura desta mesa. Sentia-me o maior, não queria que ele saísse dali”. O alfaiate tem remédio para tudo: homem baixo deve vestir calças altas, usar a camisa para dentro para alongar a perna; para um pescoço curto, colarinho pequeno, e, para freguês de ombros descaídos, um corte mais inclinado. Também já foi surpreendido pela criatividade dos fregueses, e com eles foi aprendendo tudo dos homens e das coisas.

Um dia aparece-lhe um alentejano de posses e haveres. Escolhe tecido de quatro padrões para 12 camisas. Perplexo, Alcino tenta descobrir a obsessão: “Por que não escolhe os padrões todos diferentes?”. O outro, que agia com premeditação, responde: “Daqui a uns tempos, o senhor há-de perceber porquê”. Dois anos depois, o alfaiate percebe a manha: “Como os punhos e o colarinho são os que mais se gastam com o uso, ele aproveitava o pano das mais poupadas para os renovar, e assim fugia a custos”.

Alcino e Lúcia Machado têm a vida lotada sem terem sucumbido à tirania da ambição. Mas a idade pesa, e esperam agora que o filho Tiago, que trocou recentemente a academia onde dava aulas de guitarra clássica pelo negócio da família, seja o instrumento de aperfeiçoamento do sistema montado pelo casal.

A música dá ritmo ao ateliê logo pela manhã. A labuta começa cedinho, porque não têm mãos a medir, e pelas 11h30, quando a afilhada de Lúcia, que com eles trabalha, sobe ao piso de cima para preparar o almoço, Tiago enfia-se no estúdio nas traseiras da vivenda para compor. Como referência musical, elege Stravinsky, o compositor russo que, consoante os pontos de vista, levou a anarquia ou o modernismo às suas obras, e que deixou o seu rasto no último CD do músico, “Hot Air Balloon”.

Tiago cresceu no ateliê e conhece a sonoridade de cada máquina. Enquanto trata de modernizar o negócio com o contributo do website – para que a clientela mais jovem possa fazer encomendas à medida sem ter de se deslocar a Famalicão –, o jovem arranca à realidade ideias para os seus projetos musicais, que não pensa abandonar: “Vou gravar as melodias de cada máquina, uma a uma, porque cada uma delas tem um som e ritmo particulares. Depois logo se vê o que dá”. Alcino e Lúcia deram a trela toda aos filhos. Agora assistem ao seu regresso e à passagem do legado. Não devem ter cometido grandes erros pelo caminho. Será que os antigos revolucionários descobriram a fórmula, sem o recurso à via armada, para exterminar o capitalismo? A gargalhada enfeita-lhes o rosto: “Não está mal pensado, não!”. Se inicialmente o encontro entre os dois foi uma comunhão ideológica, agora não passa de puro sentimento.