Mais duas camas em risco de fechar em S. José

Nos neurocríticos de S. José faltam 10 enfermeiros e na pediatria de Santa Maria a equipa diz que a segurança está comprometida. Denúncias não param de chegar à Ordem dos Enfermeiros.

No serviço de pediatria do Hospital de Santa Maria, há turnos com apenas um enfermeiro escalado para uma enfermaria com 15 vagas. A denúncia chegou na semana passada à Ordem dos Enfermeiros. Na carta, a que o SOL teve acesso, a equipa alerta que a segurança dos cuidados está comprometida e explica que, muitas vezes, tem de ser o enfermeiro do turno anterior a ajudar o colega.

Também nos últimos dias os enfermeiros da Unidade de Cuidados Intensivos Neurocríticos de S. José – este mês nas notícias com o ‘milagre’ do nascimento de Lourenço – voltaram a alertar para a carência de enfermeiros. Depois de já terem fechadas duas camas por falta de pessoal, há mais duas em risco de encerrar, disse ao SOL fonte do serviço. Na carta, a equipa diz que são precisos mais dez enfermeiros, sob pena de ser imperativo fechar três postos de trabalho nestes cuidados intensivos.

A Ordem dos Enfermeiros tem recebido denúncias todos os dias e a bastonária Ana Rita Cavaco fala de uma situação de “emergência nacional” na enfermagem, que entende que vai agudizar-se com o regresso às 35 horas a 1 de julho.

O problema não é só a falta crónica de enfermeiros no SNS, mas o esforço em que estão a trabalhar. Turnos com um ou dois enfermeiros, folgas por gozar, incumprimento dos descansos e turnos seguidos sem intervalo são alguns dos problemas que Ana Rita Cavaco admite que resultam de desinvestimento ao longo de 20 anos e do silêncio da Ordem sobre esta realidade, quando lhe cumpria zelar pela segurança de doentes e profissionais. O repto desde que tomou posse tem sido claro: perante dotações inseguras, é preferível encerrar camas e os enfermeiros não assumirem turnos: “Se me dizem que há um enfermeiro para 50 doentes num turno, tenho de aconselhar não assumirem. Há risco para os doentes e, se houver um erro, terei de abrir um inquérito”.

À medida que se intensificou a posição da Ordem, as denúncias de problemas dispararam e têm chegado de todos os hospitais, diz a bastonária. Há casos em que o trabalho extra está a ser imposto às equipas sem o consentimento: num hospital do Norte, os enfermeiros são notificados por sms. No Porto, um serviço chegou a avisar que não poderiam tirar férias em julho se não fossem desbloqueadas contratações. A bastonária reconhece que, na anterior legislatura, as contratações também estavam bloqueadas, mas rejeita as afirmações de tranquilização do ministro da Saúde, na semana passada, no Parlamento.

Adalberto Campos Fernandes afirmou que, no último ano, foram contratados mais 2.000 enfermeiros, rejeitando as projeções pessimistas em torno do regresso às 35 horas e assegurando que os constrangimentos serão analisados caso a caso e resolvidos. Ana Rita Cavaco  exige que o ministro explique onde foram colocados esses enfermeiros. A bastonária considera que nas últimas semanas a situação se agravou e não foi por falta de aviso: numa altura em que o absentismo disparou, afirma, os hospitais passaram a ter de pedir autorização para substituições, com a garantia de que os pedidos são despachados em 72 horas: “Chegaram-nos casos em que, antes da intervenção da Ordem, estavam há um mês a aguardar”.

‘Ou damos em malucos ou ficamos insensíveis’

Na Unidade de Cuidados Intensivos Neurocríticos de S. José, a equipa tem 64 enfermeiros e, entre baixas e licenças, estão a trabalhar 56. O trabalho é organizado em escalas de quatro semanas. Nas escalas que vão até 17 de julho, estão incluídos 32 turnos de trabalho extraordinário – que os enfermeiros não podem recusar e consideram não ser verdadeiro trabalho extra, pois é programado. Além disso, há as chamadas as horas positivas: turnos extra que não são pagos como trabalho extraordinário – entram numa bolsa de horas, sendo, no fundo, horas de folga por gozar. Com a carência de enfermeiros, isso quase nunca acontece. E Ana Rita Cavaco diz que, se fossem pagos os milhares de horas deste género devidas aos enfermeiros, que superam as 3.000 em alguns serviços, “o SNS ia à falência”.

1.437 horas em S. José e 300 feriados em Santa Maria

As cartas dos enfermeiros de S. José e Santa Maria retratam a realidade em dois serviços.  “A estratégia tem sido, no planeamento dos turnos, darem-nos menos horas do que seria o horário normal de trabalho para descontar as horas positivas. Mas depois apresentam-nos turnos extraordinários e na prática não as gozamos”, disse ao SOL fonte do serviço de neurocríticos em S. José. Só nas escalas em vigor, a equipa fará 446,48 horas suplementares, o que dará um saldo acumulado de 1.437 horas desde o início do ano. Num período de quatro semanas, os enfermeiros chegam a só ter quatro dias completos (24 horas) de folga. Não há dois dias seguidos de descanso. “Temos um colega de baixa há três anos que não foi substituído. Lidamos diariamente com a morte e situações graves. Se não conseguirmos tempo para descansar, ou damos em malucos ou ficamos insensíveis”.

Além das horas acumuladas, neste serviço de S. José, os enfermeiros têm um total acumulado de 490 dias feriados por gozar. No serviço de pediatria de Santa Maria são 300. Há duas enfermeiras com horário de amamentação escaladas em simultâneo, o que põe em causa usufruírem dos seus direito parentais. Muitas vezes, para que não fique um enfermeiro sozinho com as crianças, têm de fazer dois turnos seguidos. A administração do Centro Hospitalar Lisboa Norte informou que as dificuldades estão a ser acompanhadas e tem feito contratos de substituição. Na pediatria, o hospital garante que o mínimo de dois enfermeiros por turno foi até ao momento sempre garantido, mas reconhece que tem havido necessidade de recorrer a horas extra e feriados, por vezes pagos. O Centro Hospitalar Lisboa Central, a que pertence S. José, não respondeu até à hora de fecho.

IGAS ainda não se pronunciou

Em março, a Ordem dos Enfermeiros denunciou à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde  21 casos de violação das dotações seguras em 12 instituições de saúde. Nos casos mais graves, havia um enfermeiro para 80 camas. Até à semana passada, a IGAS não se pronunciou publicamente. O SOL pediu um ponto de situação à tutela mas não teve resposta.

No Parlamento, o ministro disse terem fechado 20 camas num total de 21.720, dizendo ser normal o encerramento de camas no verão, em virtude da organização dos serviços, da mesma forma que no inverno tende a haver um reforço. A Ordem rejeita o princípio: nos neurocríticos, há evidência de mais doentes, fruto de mais acidentes e ruturas de aneurisma no verão.

Sindicato critica CDS  

O Sindicato dos Enfermeiros Portugueses considera que há um défice estrutural de enfermeiros, mas defende que a imposição das 40 horas na anterior legislatura contribuiu mais para a degradação dos cuidados do que as medidas do atual executivo.

No Parlamento, o CDS interpelou Campos Fernandes questionando a ausência de respostas concretas para precaver o regresso às 35 horas, dizendo que só na primeira semana haverá menos 200 mil horas de enfermagem. Em comunicado, o SEP acusa os centristas de manterem a “folha de Excel” do anterior governo e diz que a imposição das 40 horas aumentou o absentismo e levou a menos 150 mil horas de cuidados diários. Guadalupe Simões, dirigente do SEP, defendeu ao SOL que o regresso às 35 horas vai traduzir-se em maior motivação. A bastonária duvida e fala de rutura se não houver de imediato a contratação de 2.000 enfermeiros, acusando o sistema de depender de uma boa vontade que tem levado à exaustão e sacrifício da vida pessoal. “Os enfermeiros não são voluntários nem escravos”, salienta.